Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pra lá de Bangladesh

Sem querer, a imprensa fez, durante a semana passada, um triste retrato de condição feminina no país. Começa com a notícia sobre os direitos das mulheres no Brasil (estamos em situação pior que Bangladesh), passa pela tragédia da prostituição infantil e termina com a entrevista da psicóloga Vilma Martichitiello que, isolada em sua classe social, prega a volta das mulheres para casa, com direito a privilégios inatingíveis pela maioria da população. Tudo ‘sem querer’ porque, em momento algum, os três temas foram relacionados entre si. Como a internet e a televisão veiculam as mesmas informações, caberia aos jornais ir além do simples registro, levando aos leitores uma análise mais completa. Uma reflexão que deveria estar em todas as matérias, e não apenas nos editoriais que raramente discutem a situação das mulheres.


É interessante também notar o peso que O Estado de S.Paulo deu aos três assuntos. A notícia sobre a desigualdade mereceu meia coluna no noticiário internacional. A prostituição infantil ocupou uma página no caderno Cidades. E a entrevista da antifeminista foi o destaque do Suplemento Feminino, ocupando uma página e meia.




‘As brasileiras estão longe de obter as mesmas condições econômicas, sociais e políticas de que desfrutam os brasileiros. Estudo do Fórum Econômico Mundial, em Genebra, concluiu que o Brasil tem um dos piores índices de igualdade entre os sexos: dos 58 países avaliados, ficou na 51º posição. Segundo o estudo, as mulheres do país ganham menos do que a metade dos ganhos dos homens para fazer o mesmo trabalho e a taxa de desemprego entre elas é de uma vez e meia superior à deles, entre outros tópicos (…). A liderança ficou com a Suécia. Já o Brasil foi superado por praticamente todos os principais países latino-americanos. Bangladesh, um dos mais pobres do mundo, consegue dar condições mais igualitárias às mulheres do que o Brasil’. (O Estado de S. Paulo, 17/5)


No que as mulheres de Bangladesh terão melhores condições do que nós, brasileiras? Se a pergunta ocorreu a algum dos leitores, ficou sem resposta. Quem forneceu, ao Fórum Econômico, as informações que mostram essa inferioridade? E por que, com tantos jornais e tantas revistas femininas no Brasil, o dado precisa vir de Genebra, sem que ninguém aqui se preocupe em confirmar – ou desmentir – esse tipo de informação? Será que a situação da mulher brasileira interessa mais aos estrangeiros do que a pesquisadores e à mídia brasileira?




‘(…) 927 cidades brasileiras têm problemas com prostituição infantil, segundo levantamento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; 93 desses municípios ficam em São Paulo, o estado recordista; 77,6% das meninas entraram na prostituição antes dos 16 anos e 21,5% começaram a se prostituir com menos de 14 anos; 51% das garotas foram vítimas de maus-tratos em casa’. (O Estado de S. Paulo, 17/5)


Ao destacar essas informações, o jornal deu um exemplo de edição descuidada. Enquanto a reportagem foi toda feita em Manaus, inclusive com fotos de menores nas ruas, um box mostra que a situação crítica está mesmo em São Paulo, segundo o jornal ‘o estado recordista’. Se São Paulo é o estado recordista, por que um jornal de São Paulo, no seu caderno sobre a cidade, faz a reportagem lá no outro extremo do país? Onde está a coerência? Ou será que já que era preciso falar do tema os editores foram vasculhar as gavetas e trataram de usar a matéria que estava pronta? Se não foi, ficou parecendo.




‘Ela deixou de ser escrava do tanque, do fogão, para tornar-se escrava da academia, do manequim 38, do padrão de beleza atual. A mulher virou um objeto de prazer explícito. Portanto, não mudou nada. Ela continua submissa, embora tenha mudado o foco da submissão. Deveríamos – e devemos – brigar pelo direito de trabalhar meio período, por horários mais flexíveis para podermos cuidar dos filhos, da casa, do marido, sem nos sobrecarregarmos como tem acontecido. Deveríamos – e devemos – ter exigido o direito de ser mulher, em toda a sua plenitude, de ser mãe, de ser do lar e, também, de poder estudar, ser reconhecida, ser participativa… Precisamos resgatar o que temos de melhor, a nossa feminilidade. Não a estereotipada, que a mídia apresenta ao mundo de hoje. Mas trazer de volta a mulher sensível, forte, amiga, companheira, sábia e cúmplice’. (O Estado de S. Paulo, 21/5)


Nada contra abrir espaço às novas idéias. O errado, me parece, é não aproveitar o momento e dar o mesmo número de linhas para que as feministas mostrassem que foram bem além de ‘queimar sutiãs’.


A impressão que fica é que dona Vilma sabe o que é melhor e que tem absoluta razão ao dizer que o feminismo só serviu para tirar as mulheres do lar. Fica até parecendo que as mulheres trabalham oito horas por dia por opção, como se as fábricas e o comércio oferecessem empregos de meio expediente, com boa remuneração, a quem estiver disposto a aceitar. E propõe, com a maior honestidade, que as pessoas baixem o padrão de consumo:




‘Compramos muitas coisas das quais não precisamos. Por que trocar de carro todo ano? Por que colocar a criança em tantas atividades? Dá pra viver bem sem tantos luxos. E se a mulher decide dedicar-se apenas à família, ela vai precisar reavaliar tudo isso’.


Talvez tenha faltado à entrevistadora a coragem de contestar sua entrevistada, mostrando que ela fala a uma pequena parcela da população brasileira. A elite que pode ter ou trocar de carro, tem dinheiro para freqüentar universidade e pode escolher não trabalhar fora, precisando, para isso, apenas diminuir o consumo. Faltou, da parte da jornalista, dizer à entrevistada que ela vive num segmento do país que pode cortar luxos. Daí a deixar que ela fale em nome das mulheres, como se estivesse abrangendo a grande maioria da população – e até das leitoras do jornal – vai uma grande distância. Ou será que os jornalistas perderam a liberdade de confrontar suas fontes?

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Jornalista