Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pra não dizer que não falei de música

Você se lembra do Peter Sellers em O convidado trapalhão? Nesse trecho que recordo aqui, há um filme dentro de outro. No primeiro filme, estão filmando um segundo, uma superprodução. Sellers faz um figurante que faz um sentinela do exército que está preparado para o ataque dos pele-vermelhas. E ele fica ali, armado com um clarim no cume de um morro. Quando começa o ataque, mesmo antes de tocar o sinal de alerta, ele é atingido por trezentas e duas flechadas no peito. Mas não morre. Teima em não morrer. Ele se contorce, quase cai, quase toca o clarim, desafina, leva outra flechada mas, uma vez mais, se levanta e fica de joelhos.

Aparentemente, na busca de ser aceito como ator dramático, tornar-se celebridade, destacar-se dos demais e ter sucesso na vida, apesar dos ferimentos, qual zumbi, ele insiste, redramatiza tanto o drama que não morre. A personagem não morre, mas mata a cena.

E, como alguns animais que para sobreviver matam seus filhos, como Édipo mata seu pai, a indústria do disco – e o comercial das revistas, jornais ou canal de TV –, está matando a música e o jornalismo. Note-se que a cenoura do sucesso pessoal/financeiro (os coadjuvantes) está cada vez mais apetitosa.

Critérios meramente lucrativos

No Brasil, as indústrias do disco e da informação agora são sustentadas sem música ou notícias. Está estabelecido que o Mais Novo Sucesso Musical ou é ‘puxado’ por uma mulher sorridente, afinada, (nem sempre) bonita, ou por um produtor musical que, apesar da pré-falência das gravadoras (mesmo que estertorando) é bem relacionado.

O Sucesso Editorial, por notícias mais e mais dramáticas ou sobre atores que se confundem com a personagem da vez na novela da Globo, além, claro, de um editor-chefe que vê seus leitores como personagens já convenientemente idiotizados pela TV. E há uma profunda relação entre eles: um mata e o outro esfola. O que lhes interessa é aprimorar um faro infalível para ‘o que vai vender’ e transformar tudo numa fórmula de faturamento fácil. E o fazer sucesso tornou-se um símbolo reverso. Quanto menos, maior.

‘O Brasil está de cabeça pra baixo, até o seu dinheiro…’, dizia o maestro soberano Tom Jobim numa entrevista, tentando colocar em pé uma nota da época que tinha a cara de um índio estampada. Ele percebeu que se colocava em pé a figura de um lado e o outro ficava de cabeça pra baixo.

Aquilo que, adequadamente, chamamos de ‘indústria cultural’, representado pelo gosto mediano e ganancioso dos industriais, é tecido por um laptop gringo alimentado com dados de critérios meramente lucrativos.

Verbo estranho

Mas, e apesar da falta de música e notícias, a música não morre. Nem o jornalismo. Especialmente porque o país continua sendo um gigante adormecido e desconhecido. Sempre haverá um Zezinho de Teresina ou Carlinhos do Maranhão trazendo sangue oxigenado para os corações mais musicais e jornalistas que, implodindo os viadutos superfaturados erguidos sobre notícias ficcionais construam pontes com aqueles tijolos maciços e antigos com informações seguras.

Na medida em que as esquinas das grandes cidades estão cheias de vendedores de mapas e a indústria já vende GPS de pulso, os dois fatos simbolizam um sintoma e um sinal: está na hora das pessoas se encontrarem, ou então, no momento certo, procurarem e acharem as que estão perdidas.

De tanta gente sucessando ao léu – verbo estranho, mas pelo menos sonoro –, evidentemente, nada como um bom GPS para você e eu definirmos melhor nosso rumo musical e jornalístico.

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Compositor, educador e jornalista, Delfinópolis, MG