Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Praga da curiosidade

Renée Zellweger, sempre quis ser artista. Um sonho alimentado desde criança. A família, gente humilde, não a desencorajava, mas achava difícil chegar a Hollywood. Nascida na pequena cidade de Katy, no Texas, não mediu esforços para atingir os objetivos.

Com 33 anos de idade, passou de leitora dos imensos e luminosos cartazes de cinema colocados estrategicamente nos arranha-céus de Manhattan, no coração de Nova York, a personagem desses mesmos letreiros. Tudo aconteceu igual a um conto de fadas. Renée estava longe, no entanto, de experimentar na própria pele, os dissabores de ser uma estrela na terra onde existem endiabrados paparazzi. Talvez até conhecesse superficialmente esse tipo de profissional, que trabalha duro, joga pesado, não dorme quando necessário, num plantão que se estende por 24 horas e investe dinheiro e boas somas em dólar pelo seu trabalho, nem sempre aceito como sério e ético. Uma coisa é certa: assunto desse tipo alcança grande a receptividade.

Ganhadora de dois Globos de Ouro pelos filmes, já nas telas, Chicago e Cold Mountain, não se conteve de alegria, por uma indicação pela rigorosa Academia de Arte e Ciência de Hollywood. O seu trabalho em Cold Mountain, foi olhado com simpatia e elogios pela crítica, levando-a a ser indicada, pela segunda vez, a ganhar um Oscar, como atriz coadjuvante. Esse o sonho é a realização de Renée. Os descontentamentos e frustrações viriam depois.

A palavra paparazzi nos leva a associá-la a criatividade desse gênio do cinema, o grande e adorável farsante Frederico Fellini, através do seu filme, A Doce Vida (1960), considerado pela filmografia mundial, uma obra-prima. O fato se deu mais ou menos assim…

Fellini trabalhou em jornal, como caricaturista e redator, e passou a observar com interesse as fotos de escândalo do fotógrafo Tazio Secchiaroli. Uma delas, publicada em 1958, ele recortou e guardou… Um artista americano foi flagrado pelo fotógrafo, jantando num restaurante com Eva Gardner (seria o brigão Frank Sinatra?), e não gostou, agredindo-o. No outro dia a notícia saiu na primeira página de um jornal italiano. Fellini viu as fotos e no filme acima, criou um personagem idêntico, inspirado em Tazio, chamando-o de Paparazzo e o qual trabalha ao lado do repórter Marcello Rubini.

Os dois jornalistas não passam de boas-vidas, embora, apresentem problemas existenciais e éticos, pelos exageros cometidos. A mulher com quem Rubini vivia, não aceitava a sua infidelidade e tenta o suicídio, sendo internada num hospital. Viu-se obrigado e constrangido a pedir aos colegas que não dessem a notícia. O feitiço virou contra o feiticeiro. Depois, já não sabia se levava adiante o plano de tornar-se literato, publicando um livro, ou se continuava escrevendo sobre celebridades, o que lhe dava sucesso. São essas questões que, ainda hoje, se defrontam no meio jornalístico, com profissionais que nem sempre agem com discernimento na condução do trabalho, embora, por nenhum motivo, deva ser impedido de realizá-lo, com liberdade.

Desespero e infelicidade

Na última semana assisti um documentário num dos canais fechados de TV, sobre essa questão. O personagem é exatamente Renée. Fizeram-lhe um cerco: 24 horas/dia. A perseguição dos paparazzi não cessava. Não lhe deram trégua um só momento. A estratégia é bem feita. Cada um se posiciona num lugar nas proximidades de onde mora o alvo. Eles se hospedam em hotéis, alugam por uma fortuna, salas ou casas particulares e pagam alguém ligado à estrela, para espioná-la. Ficam na espreita, seguindo-a por toda parte. O profissional que a acompanha de carro, ao olhá-la em qualquer circunstância bate o click. De imediato manda a fotografia, usando uma sofisticada máquina digital, para uma agência especializada, que repassa ou negocia para o jornal ou outra mídia. É um leilão.

As fotos preferidas fogem do convencional. Só interessam aquelas que deixe a artista em situação desconfortável e possa causar impacto junto ao público. Com René foi assim. Ela passeava com o seu cão de estimação e juntou a sujeira do mesmo; usou um casaco comprido e óculos escuros e um boné para despistar; rodou de carro, fazia curva fechada, aumentou a velocidade para fugir do assédio; foi ao jardim e cuidou das flores; levou comida ‘quentinhas’ para mendigos expostos ao frio, à noite. Nenhuma dessas fotos interessou às agências ou ao veículo contatado…

O que desejavam então? Uma foto que sugerisse maldade, algo sensacional, aliás, alguma coisa que a deixasse em situação difícil, com exposição da privacidade. A única foto que selecionaram foi uma na qual ela saía de um restaurante com um amigo, não-identificado. Deu primeira página.

Logo que a princesa Diana Spencer morreu, em agosto de 1997, num acidente de carro com seu namorado, a Europa andou se preocupando com o problema da invasão da privacidade. As autoridades discutiram o problema em fórum privilegiado. Somente depois se lembraram que o artigo 8 da Convenção Internacional dos Direitos Humanos protege o cidadão contra essa espécie de crime. Foram feitas muitas sugestões. Nenhuma vingou, até porque, na morte da princesa, as autoridades francesas chegaram a conclusão que o responsável pelo acidente foi o motorista, que dirigia bêbado, e não os paparazzi.

Sobre esse clima de pressão contra a privacidade alheia, os filósofos franceses como Michel Foucault e Alain Finkielraut, se pronunciaram a respeito. O primeiro disse que a imprensa comete um estupro permanente contra as pessoas; o segundo justificou que ‘um novo poder procura dominar o mundo, o poder de satisfazer a nossa curiosidade’. Essa curiosidade olhada por esse prisma é capaz de tudo. As revistas e as colunas de fofocas são imbatíveis em tiragem.

Que René vá logo se acostumando, caso ganhe o Oscar, a esse mundo pouco civilizado que já fez a alegria dos que gostam de aparecer, mas o desespero e a infelicidade daqueles que só querem zelar pela sua vida privada.

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Professor universitário, jornalista e advogado