Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Preciosas lições extraídas da dor

‘Com a proximidade do ano 2050, a população mundial total está chegando à marca dos 12 bilhões e continua a crescer. A população da África triplicou para aproximadamente 2 bilhões de pessoas. Um imenso número de pobres está trabalhando terras cada vez mais marginalizadas. O corte de florestas e a erosão das encostas foram acelerados, resultando na escassez de alimentos e combustível.

Rios, açudes e sistemas de irrigação estão sendo obstruídos; grande parte das melhores terras cultiváveis está se tornando salina ou alagadiça e as áreas baixas estão sujeitas a enchentes cada vez mais frequentes e desastrosas. Milhões migraram para as favelas urbanas, onde a pobreza, a superpopulação e condições precárias de saneamento tornam a vida quase insuportável; onde a principal forma de divertimento envolve sofisticadas tecnologias de comunicação que exibem constantemente as imagens da riqueza diante da realidade da pobreza.

As estruturas e os valores comunitários tradicionais foram corrompidos há longo tempo e uma parcela significativa dessa população desesperada voltou-se para o crime, ou procura alívio no álcool e nas drogas…’

Que venham os próximos 20 anos!

Embora oportuna e atual neste momento em que o Rio de Janeiro ainda se refaz, perplexo, da tragédia do temporal, essa reflexão foi feita há 15 anos. Consta de um relatório dos técnicos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), após as famosas reuniões dos chefes de Estado de todo o mundo para discutir as questões de pobreza, desemprego e exclusão social. Algumas dessas reuniões, como o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado em Nova York em 1990; e o Encontro Mundial de Cúpula pela Terra, o Eco-92, sediado no Rio de Janeiro, possibilitaram, além dos intercâmbios econômicos imediatos, estabelecer uma série de metas futuras para melhorar as condições de vida das crianças. Pensando nelas, obviamente, pensa-se no destino do planeta.

Dos objetivos mensuráveis a serem atingidos por aquelas metas, interessa-nos listar aqui os que previam redução de 50% nas taxas de mortalidade de crianças menores de cinco anos; educação básica e fornecimento de água limpa e saneamento para todas as comunidades. Estabelecidas há 15 anos, estas metas seriam viabilizadas em 2000, mas o século 20 já fechou a tampa e o 21, que se prepara para encerrar os seus primeiros dez anos, ainda não vive a urgência de transformar palavras em ações. Daí porque o texto publicado acima expõe uma visão tão pessimista quanto ao futuro e, por extensão, o Rio de Janeiro atual nos dá motivo para sustentá-la.

Será verdade? Felizmente, não. A cidade tem provado que, historicamente, sabe administrar crises e reverter pessimismos; mesmo porque, para viver 2050 é preciso passar pela Copa Mundial de Futebol em 2014, pelas Olimpíadas em 2016… Então, que venham os próximos 20 anos!

Emoções reais

Para justificar este otimismo e entender como isto é possível, por favor, retornem ao texto e releiam o trecho: ‘…onde a principal forma de divertimento envolve sofisticadas tecnologias de comunicação que exibem constantemente as imagens da riqueza diante da realidade da pobreza‘. Onde está escrito ‘sofisticadas tecnologias de comunicação’, leia-se: celulares com câmera de alta resolução, multimídia, Mp3, Mp4, discagem e lembrete de voz, modem integrado, infravermelho, bluetooth, GPRS, viva-voz, enfim todas essas tecnologias que têm sido utilizadas nos últimos dias, numa cobertura e rede de solidariedade nunca vistas na história do Rio de Janeiro.

Ao invés usarem essas maquininhas para exibir ‘constantemente as imagens da riqueza diante da realidade da pobreza, como previram os técnicos do Unicef, esses meninos e meninas do Rio, muitos sem nome ou sobrenome, pois se sentem muito mais participativos e invasivos sendo apenas um nick no Orkut, ponturaram os principais telejornais brasileiros e sites internacionais com imagens sobre a tragédia em todas as áreas de risco.

Imagens sem cortes, contínuas, desfocadas. Emoções reais, há muito esquecidas pela grande imprensa. Quantos ainda se lembram que a emoção ou o flagrante estão no mesmo nível ou um grau e meio acima da técnica? Que faculdades têm ensinado isso? É por exemplos como este que o Rio de Janeiro extrai preciosas lições da dor; dá a volta por cima e se permite rir de si mesmo, como naquela imagem emblemática dessa tragédia não anunciada (faltou, sim, um alerta do serviço de meteorologia sobre os riscos), em que três rapazes, vestidos de surfistas, se aventuravam nas ‘ondas’ sobre uma pista inundada no Jardim Botânico.

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Escritor, jornalista, autor roteirista da TV Brasil; roteirista da série Mojubá, Canal Futura