Ao contrário do que o leigo pensa, e muitos jornalistas certamente compartilham, é que quando se faz um exame de sangue ele traga o diagnóstico do que a pessoa apresenta, e não apenas uma série de parâmetros para que o médico faça dele uso para o seu raciocínio clínico, para daí sim, elaborar um diagnóstico clínico. Não virá no hemograma (exame de sangue) ‘paciente portador de pneumonia por estreptococcos pneumonie‘. Mas alterações celulares compatíveis com uma infecção bacteriana. Assim ocorre com um exame para Aids, o exame dá uma reação positiva, que poderá ser um falso positivo em um paciente não portador, mas em geral significa que o mesmo é. Para advogados, o que interessa é que é um meio de ganhar dinheiro de algo existente. A falibilidade de todos os métodos e diagnósticos. Para o médico, o indício de um mal que deve ser confirmado e tratado apenas. Não existem exames únicos infalíveis e nem todas as doenças são diagnosticáveis e já diagnosticadas. Deveria o laboratório omitir um dado positivo porque pode desagradar ao paciente, repetir tudo que é exame duas três vezes, para confirmar tudo que é exame ou deveria se esperar compreensão e entendimento de pacientes e jornalistas sobre as falibilidades dos métodos?
O mesmo ocorre quando se faz uma pesquisa epidemiológica. Os achados devem ser fornecidos os mais fiéis possíveis e evitado maquiá-los para ocultar o indesejável para alguém, publicado o método usado, ou os resultados conseguidos. Só a partir destas informações eles podem ser repetidos e portanto, confirmados, contraditados ou corrigidos.
Pior coisa é a ignorância
O assunto me despertou ao ler neste Observatório o artigo do ‘Jornalistas e cientistas repetem erros do passado‘, que trata do achado de bactérias super-resistentes entre homossexuais principalmente. Podemos traçar um paralelo entre as bactérias super-resistentes encontradas em hambúrgueres mal passados (Escherichia coli 0157, Salmonella Typhimurium DT104) ou tuberculose multirresistente.
O que interessa informar as pessoas? Primeiro que elas existem e que podem produzir doenças. Mas em quem e em que situações? Onde elas ocorrem? Para que moradores do Rio, por exemplo, não corram atrás de uma vacina desnecessária, mas que faça com que as pessoas das áreas endêmicas procurem se defender da omissão dos órgãos públicos que não vacinam as pessoas nas áreas de risco de uma doença perfeitamente prevenível. Que práticas e modos as pessoas podem pegar? Evitar comida nas áreas de febre-amarela de nada adianta para quem quer se prevenir, assim como eliminar mosquitos não é suficiente para proteger alimentos de doenças contagiosos. Informar as pessoas que são grupos de risco, como obesos desenvolvem diabetes e hipertensão, ou possam ter hipotireoidismo; magros demais podem ter distúrbios da tireóide, anorexia ou tuberculose etc., interessa estas pessoas de que são passíveis de ter algumas conseqüências nas suas vidas que devam dar uma melhor atenção do que os outros. Como já disse, a pior coisa é a ignorância, pois ela não nos permite tomar nenhuma medida para coisas que desconhecemos naturalmente. É neste aspecto que a imprensa é importante para complementar a educação básica e a atualização das informações das pessoas.
Desinformação cria paranóia
Dito isto, o discurso alegando ‘conspiração’ anti-homossexualidade alegado pela autora pode ser verificado nos artigos que a desgostaram, e que ela alega ‘um ataque’ à verdade por meio da ciência. Dizer que a nova doença produzida pela bactéria MRSA USA300 (Methicillin-resistant Staphylococcus aureus – ou SARM, Estafilococos Aureus resistente à meticilina, MRSA, na sigla em inglês) tem uma incidência (ocorre em maior número) em regiões de homossexuais nos EUA e que produz lesões na região das nádegas e anais sérias, para ela, um modo disfarçado de condenar tais práticas! Lendo os artigos, não encontramos nenhum conceito de valor sobre a homossexualidade. Como não existe com usuários de tabagismo, álcool ou drogas ilícitas, doenças mentais. Entre os direitos dos grupos de pessoas não está o de serem desinformados. O desconhecimento é a maior causa de morte também em Aids.
Como vimos nos casos acima, conhecer isto é importante para as pessoas em risco para saberem que devem se cuidar através de uma melhor informação, de aprender como se prevenir e como reconhecer precocemente os sinais de uma doença a que estão sujeitas, seja do pulmão, advinda de um hambúrguer mal-cozido, do consumo de carne da vaca louca ou de práticas sexuais. Sejam elas adquiridas no tipo de relação em que a pessoa está envolvida. Freiras não precisam se preocupar com nenhuma delas, e pessoas promíscuas, homossexuais ou heterossexuais, devem estar atentas a todas.
Será que deveríamos não mostrar às mulheres o risco de seus maridos serem transmissores de Aids porque podemos abalar a moral da família heterossexual? Seria um ataque ao casamento? Informá-las disto é uma obrigação do cientista e do jornalista interessado em levar ao público alvo este tipo de conhecimento. Pouco ajuda informar genericamente que existe um mal indeterminado circulando por aí, que não se pode dizer em quem, em que situações e nem podemos revelar aonde no corpo tem se manifestado. Mas que as pessoas se alertem para qualquer coisa diferente, que não se pode dizer o que é. Além das pessoas alvos não se alertarem mais do que as outras, apenas leva a desinformação para criar uma paranóia sem sentido, que não produz alerta nem nas vítimas e nem em outros profissionais, resultando apenas danosa.
Prevenção e mente distorcida
Podemos concordar que nem tudo que se descobre precisa ser informado, pela sua irrelevância e fazer parte da cultura inútil, pois são informações ainda sem sedimentação em interpretação e repetição de trabalhos para gerar alguma consistência, como a ‘descoberta’ de que chimpanzés podem fazer alguns joguinhos melhor do que alguns universitários. Podem não ser informados, não que não devam. Mas, no caso em pauta, a informação é relevante principalmente para todas aquelas pessoas expostas. Supor que isto condene as pessoas ou que estas se sintam impelidas a mudar de comportamento é preconceito. A sífilis não fez as pessoas mais puras e nem as doenças sexuais em geral levou a práticas mais comedidas. Querer que agora se desinformassem as pessoas por estes motivos me parece fútil, pois assim como as mesmas não estão interessadas se o papa condena o aborto, o uso da camisinha, o uso da pílula anticoncepcional, não vai ser mais uma doença que produzirá o que a socióloga alega. Podemos concluir que informar é vital em primeiro lugar.
Mas a autora possui uma visão mais preocupante que este simples erro de interpretação de uma pessoa com a mente treinada fora do meio científico. ‘Ao contrário do que alguns cientistas ainda insistem em defender, as informações apelativas, tendenciosas e erradas não surgem por responsabilidade exclusiva dos jornalistas, mas também de suas fontes primárias, os próprios cientistas e médicos’, diz a mesma. E para tal, justifica, a Aids por esse meio ‘serviu como uma ótima desculpa para estigmatizar um grupo de preferências sexuais condenadas pela sociedade.’
Me parece que é difícil dizer que nos EUA houve isto, pois justamente o movimento homossexual se tornou mais vigoroso neste mesmo período. Mas a informação epidemiológica de que os homossexuais masculinos eram as principais vítimas foi confirmada em levantamentos epidemiológicos em todo o mundo, com exceção do que ocorria na África. No entanto, é provável que no início, antes de modificar o seu perfil, se tornando mais difundido, e mais branda, a epidemia foi melhor prevenida pelas pessoas saberem que estavam com este risco. Com o passar do tempo, os levantamentos epidemiológicos, como este que está monitorando as bactérias multirressistentes, constatou uma mudança nas relações de contaminação. Não porque os cientistas e médicos (e os jornalistas por sua vez) desejassem que os homossexuais fossem punidos, mas porque os dados assim guiavam as estratégias de pesquisa, de alertas, de saúde pública, de escolhas medicamentosas. Insinuar que foi criada uma informação falsa para isto é estar com a mente distorcida. Preconceito seria deixá-los abandonado e não realizar o monitoramento como este alerta precoce agora. Queixa, por sinal, dos negros nos EUA de que são relegados ao segundo plano.
Valores religiosos e metafísicos
Mas a jornalista alega que ‘cresceu a responsabilidade do jornalista, melhorou o acesso às informações dos leitores e a conscientização da sociedade em relação aos seus direitos, amadureceu a relação entre cientistas e jornalistas e minimizou-se a visão da ciência como única verdade dos fatos’ (note que ela fala da ciência, e não a visão particular de algum cientista). Se entendermos que a editora-adjunta da revista ComCiência, mestre em História Social pela USP e pesquisadora do Labjor-Unicamp não pertence ao campo científico, está correta a sua visão. Mas nos deixa em dúvida de onde ela alega saber e onde ela tira o poder para ditar as verdades que deseja impor aos outros para ter determinadas preferências como morais. Da ciência não emana uma ética e uma moral. Das religiões e de filosofia surgem sujeitas a sua organização de uma visão particular cosmológica do universo e da finalidade atribuídas às criaturas humanas (algumas incluem os animais) para determinar uma moral e relações entre os homens, justiça, comportamentos sociais desejáveis, práticas condenáveis, crimes etc. Como a mesma reconhece que a ciência (dela) não possui ciência na verdade, de onde ela se considera autoridade para determinar as pessoas o que devam publicar, investigar, praticar, fazer ou dizer?
A ciência errou em várias ocasiões. É fato. Mas a não-ciência não acertou em nenhuma ocasião, pois ela não se responsabiliza por nada, pois nada pode descobrir. Não creio que a história social, a psicologia ou a sociologia possam passar a ser os novos ditadores do conhecimento válido ou da moral em substituição as religiões para determinar o que se pode ou não pesquisar e concluir, como abordado no OI em ‘A verdade definitiva‘. Parece-me que a mesma erra ao atribuir ‘discursos moralizantes maquiados com a credibilidade e a legitimidade da ciência’ aos artigos. No momento em que ela se coloca em julgadora da moral, do socialmente desejável e dos bons costumes verdadeiros, ela deve colocar de onde emana o seu poder para tal, o seu conhecimento que ela diz que não é científico. E por que deveríamos aceitar a sua autoridade para determinar regras e verdades aceitáveis? Parece-me que o seu discurso anti-científico a desqualifica para tal, na medida em que se baseia apenas na sua opinião, valores pessoais ou gostos adquiridos. Se sua formação não é científica, e a mesma rejeita a validade da mesma em várias passagens. Se não são valores religiosos e metafísicos que a autorizam, que direito possui para sugerir seja lá o que for aos outros como fatos e verdades a serem permitido divulgar moralizando como um novo Gustavo Corção?
Debate e ciência
Lembro-me da polêmica travada no mesmo sentido com o sociólogo, integrante do Núcleo Piratininga de Comunicação e do Núcleo de Estudos do Capital (PT-SP), Sérgio Domingues, em ‘Homossexualismo, imprensa e ratos‘, publicado no OI em 04/11/2003, na qual o mesmo mostrava o seu desconforto pessoal como sociólogo com as pesquisas em ratos sobre a homossexualidade considerando o conhecimento atual como definitivo.
Acho que podemos criticar os outros por muitas coisas, desconhecimentos, erros, mas não por nossos valores pessoais tirados sabe lá de onde. Verdades de foro íntimo devem servir para a pessoa apenas, não como fatos para serem patrulhadas na imprensa, acusando os outros de pecadores da nova ordem. Gostos pessoais podem nos guiar na vida, mas não modificar a natureza das coisas. Não tornarão a Terra imóvel no centro do Universo ou o hambúrguer estéril.
‘É preciso apontar, debater, argüir e insistir na necessidade de um jornalismo responsável, prestador de serviços, analítico e de qualidade em todas as instâncias, mas, sobretudo, combater qualquer tentativa de preconceito e estigma social’, conclui a mesma. Principalmente contra a ciência e os cientistas, que foi o caso.
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Médico, Porto Alegre, RS