Não sou muito afeito a analogias, embora sempre tenha recebido informações, de professores e colegas mais experientes, de que elas (as analogias), em algumas situações, particularmente em matérias envolvendo ciência e/ou tecnologia, ajudam o leitor a compreender o que se pretende informar. Mas este artigo não trata de ciência e tecnologia. O objeto de questionamento é a série produzida pelo Jornal Nacional sobre eleições, em que se coloca a gestão municipal em relação de equivalência à gestão de um condomínio residencial.
É bem provável que alguns condomínios de cidades grandes tenham muito mais moradores do que boa parte de nossas cidades do interior. Entretanto, isso não justifica o estabelecimento forçado de tal relação. Faz-se analogia com o intuito de instaurar um princípio de identidade, semelhança, aproximação entre coisas que, genericamente, são desiguais. Porém, por mais que se tente forjar semelhanças, identidades e aproximações entre condomínios e prefeituras, só se encontrarão diferenças. E é nesse ponto que reside a minha implicância com a série, tecnicamente muito bem produzida.
A série, a meu ver, comete cinco equívocos jornalística e politicamente graves. O primeiro deles é o da simplificação, referendada, inclusive, por vozes da academia. Relacionar os interesses particulares de um condomínio, modelos de gestão, comportamentos pessoais de moradores, com a complexidade das relações que estruturam a gestão da coisa pública, é cometer aquilo que Ignacio Ramonet, num texto recente, chamou de infantilização da notícia. O telespectador não é um ‘Homer Simpson’, como já quis o Jornal Nacional uma vez.
O risco do reducionismo
O segundo equívoco é de compreensão. Ao enxergar equivalência em relações tão díspares, agenda-se uma leitura midiática que elimina exatamente as particularidades, as dessemelhanças, as desigualdades entre objetos. Um condomínio é marcado por semelhanças: os apartamentos ou casas são padronizados (tamanho, arquitetura), os moradores, pertencem, geralmente, à mesma classe social e isolam-se do resto do mundo em busca de segurança. As regras internas são construídas para reforçar a situação de isolamento e podem ser mudadas a cada assembléia.
Já a prefeitura tem como objeto de ação o gerenciamento, exatamente, das dessemelhanças, das desigualdades sociais, dos conflitos de interesses entre classes antagônicas, a ocupação desordenada dos espaços urbanos, na maioria das vezes promovida pela construção de condomínios. As regras não são fáceis de serem construídas, nem tão pouco de serem alteradas. As políticas públicas têm caráter universalizante e não podem ser restritivas como as regras de um condomínio, que são feitas para proteger os que já estão dentro do muro.
O terceiro equívoco é o de generalização. Não basta fazer isso ou aquilo, desse jeito ou daquele, seguindo fulano ou beltrano, para as coisas funcionarem. Tudo que serve a um condomínio, por exemplo, certamente não serve à prefeitura. Um protege interesses de iguais, outro deve esforçar-se para gerenciar conflitos entre desiguais. Nem mesmo modelos de gestão que deram certo no município X garantem os mesmos resultados no município Y. Toda vez que generalizamos, corremos o risco de cair numa coisa perigosa, chamada reducionismo.
Apatia e desinformação
O quarto equívoco é o de despolitização da gestão pública. Ao apresentá-la como equivalente à vida de um condomínio, o JN distensiona o embate político-eleitoral que marca, fortemente, a vida de um município. Retira de cena partidos, idéias, alianças, oposição, negociações, atores em permanente campanha, em suma, a luta cotidiana pela manutenção ou conquista do poder. Pela impossibilidade legal (?) de dar voz aos atores envolvidos nas disputas municipais, a série privilegiou o modelo condomínio, cuja política é de outra natureza.
Por fim, o quinto equívoco trata do nível de comprometimento do JN com as eleições municipais, aquelas que realmente existem para o eleitor e que decidem, de fato, a sua vida na localidade. A opção editorial foi clara. Em não podendo desconhecer essa movimentação nacional, e para não parecer omissão, forjou-se um gancho aparentemente perfeito: a vida em um condomínio é análoga à vida em um município. O que existe em um, em proporções maiores ou menores, pode ser encontrado em outro. O que serve para um pode muito bem ser adaptado para servir ao outro. Simples assim. O JN fica bem com a audiência, que se mantém apática ante a desinformação. Tarefa cumprida.
Mas, contudo, entretanto, todavia… Prefeitura não é condomínio, e vice-versa.
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Jornalista, professor/pesquisador da Universidade Estadual da Paraíba, vinculado aos programas de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Ensino de Ciências