Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Press release e as confusões imperdoáveis

Em 1987, eu realizava o sonho de refazer a viagem através dos Estados Unidos, lida em On the Road, de Jack Kerouac, e, como era sonho, também brincava que estava no filme Sem Destino, cujo diretor, Denis Hopper, faleceu semana passada. Quase me matei, acidentalmente, no deserto de Mojave. Fotofóbico, fui iludido pela luz difusa do pôr do sol, perdi momentaneamente a noção de distância e quase me atirei no que eu pensava fosse uma rampa de areia macia. Tratava-se da beirada de um abismo, início de um lugar com o nome de Portal do Vale da Morte.

Não poderia imaginar que, décadas mais tarde, estaria escrevendo uma crítica do jornalismo que perdeu a chance de chamar a atenção do mundo com uma notícia bombástica, ou, pelo menos que a notícia sobre o teste do míssil X-51A Waverider, hipersônico americano, fosse contextualizada, e não apenas mal copiada do press release da empresa que fabrica o tal equipamento bélico. Teste este realizado no Portal do Vale da Morte.

O assunto não poderia ser mais momentoso, mas a nossa imprensa parece não pensar assim. Primeiro, porque foi ali (há uma bandeirinha dos Estados Unidos sinalizando) naquele vale que caiu, matando o seu piloto, o veículo aéreo tripulado X-15A em 1967, evento que fez com que o governo americano cancelasse o projeto X-15A; segundo, se a notícia fosse contextualizada apropriadamente.

Mutilação e erros de tradução

Em 26 de maio último, a assessoria de comunicação da empresa Pratt & Whitney Rocketdyne (fabricante do X-51A Waverider junto com a Boeing) dispara um press release, através da distribuidora de notícias plantadas PRnewswire. Quem primeiro avançou na notícia foi a AFP, no mesmo dia, através de seu acordo com o Yahoo news. A France Presse (AFP) publicou um pedaço do press release original e, em seguida, a EFE (agência espanhola), um pedaço quase idêntico da notícia, porém ambas somente no dia 27 (será que o editor trabalha para as duas empresas?). A partir daí, o mundo (o pequeno mundo dos que se interessam por testes de aviões hipersônicos tripulados) ficou sabendo da notícia, através (no Brasil, três dias depois) do Último Segundo, do Correio Braziliense, do UOL, de todos os veículos que acharam interessante publicar esta que já se tratava de uma notícia morta, após ser mutilada. Seria uma vibrante notícia para futura ‘suíte’, se fosse divulgada integralmente e contextualizada. Mas não foi.

Fora a manchete, alterada do press release original, além de ser mutilada, a coitada da notícia foi levemente adulterada por conta de erros de tradução do inglês para o português. O press release produzido pela própria empresa destaca entre aspas uma declaração do diretor responsável pelo teste do míssil hipersônico.

A declaração é que eles, no laboratório, ‘estão em êxtase’ por terem concluído o teste, e o tradutor preferiu dizer que ‘eles estavam felizes’. Relevável, concordo, mas uma de suas declarações, escolhidas a dedo pela assessoria de imprensa, não foi aproveitada nem pela AFP, nem pela EFE e, claro, tampouco pelos tupiniquins Último Segundo, Correio Braziliense, UOL, por aí afora. Trata-se de uma bomba, ignorada pelo jornalismo de diplomados vigente.

Alvos distantes

‘We equate this leap in engine technology as equivalent to the post-World War II jump from propellers to jet engines.’ A Clínica Literária, que além de agência de notícias sob demanda é também prestadora de serviços de tradução, assim traduz a bomba: ‘Comparamos este salto na tecnologia de motores como o equivalente ao pulo pós-Segunda Guerra Mundial das hélices aos motores a jato.’ Mas o detalhe importante, contextualizado apropriadamente, é que a notícia não se refere somente ao teste de um motor capaz de levar uma aeronave a um vôo seis vezes mais rápido do que o som (Mach 6, no jargão do meio), mas do teste de lançamento de um míssil acoplado nesta aeronave não tripulada.

Repetindo: uma aeronave similar, porém tripulada, caíra no Portal do Vale da Morte, em 1967, e o programa foi cancelado – pelo visto, temporariamente. Mas observe: o programa cancelado em 1967, que matou um piloto, foi do X-15A e a matéria atual é sobre o X-51A. Contudo, a matéria publicada nos jornais brazucas mistura imperdoavelmente os dois números.

Do mesmo release original: ‘The X-51 fits in with US plans to hit distant targets with conventional weapons within an hour, dubbed `prompt global strike´.’ Tradução: O X-51 se encaixa nos planos dos Estados Unidos, apelidados de ‘ataque global’, para atingir em uma hora alvos distantes com armas convencionais.

Explicar notícias

Outra informação (ignorada) importante da notícia é que o teste foi interrompido, segundo uma declaração por escrito da Força Aérea americana, porque foi observada uma anomalia no vôo.

O press release original foi disparado com a seguinte manchete induzida: ‘Motor Scramjet da Pratt & Whitney Rocketdyne impulsiona o Histórico Primeiro Vôo de um X-51A’.

A AFP tempestivamente saiu com: ‘Força Aérea dos Estados Unidos testa míssil hipersônico’. O Correio Braziliense não brincou em serviço e reproduziu quase na íntegra, tanto o título, quanto o pedaço do press release a esta altura mutilado, e também com erros de tradução.

A EFE Brasil, copiada pelo plantão do Último Segundo, deu: ‘EUA testam míssil seis vezes mais rápido que o som. Míssil pode ser usado para atacar alvos distantes em menos de uma hora.’ Só faltou o estampido. Talvez porque soubesse que o texto era aquele pedaço morto de notícia.

Há algum tempo atrás, Ana Gerez, diretora da EFE no Brasil, fez eco com outros correspondentes internacionais, em evento para estudantes de Jornalismo na UERJ, realçando a necessidade de explicar melhor certas informações em notícias de seu país de origem. Para o público leitor inserir-se no contexto de uma notícia que talvez não lhe faça sentido, se não for explicada um pouco mais.

Sorriso de saudade

O mundo assiste com interesse à interferência do Brasil e Turquia na questão do potencial de armas atômicas do Irã, em contraposição ao interesse dos Estados Unidos e seus seguidores, sobre a mesma questão. Em discurso semana passada, o presidente Lula insinuou que é necessário que os Estados Unidos e outros países que já possuem armas atômicas se desfaçam das mesmas. Por que os Estados Unidos, Rússia e demais países que possuem poder atômico de destruição exigem que o Irã, ou qualquer outro país, pare de fabricar esse tipo de arma, se eles mesmos não abrem mão da mesma?

Como se vê, a partir de agora, além do poder atômico, os EUA podem disparar uma bomba atômica acoplada a uma aeronave não tripulada que viaja a uma velocidade seis vezes maior do que a da luz. Isso é ou não é uma contextualização para ser explorada, apurada? Ou basta resumir (errado) o press release da assessoria de imprensa da empresa que fabrica o X-51A?

Recentemente, William Bonner produziu calculadamente um sorriso de saudade, ao noticiar ‘a aposentadoria do ônibus espacial americano’. A notícia era só esta e o sorriso do simpático âncora, belas imagens e o texto da aposentadoria da coisa, nada mais, em pleno prime time. Não havia mais nada para informar sobre a descontinuidade do negócio?

Na segunda-feira (31/5), o Último Segundo publicou o resultado de um estudo do Inep sobre o percentual alarmante de professores do ensino fundamental e médio regular sem diploma de licenciatura. O texto é impecável quanto à receita de bolo da pirâmide invertida apreendida na faculdade, mas contém inúmeros erros de português, de ortografia a paralelismos. Será que diploma de jornalista resolve este e os outros problemas de nossa imprensa, como os das matérias do míssil e do ônibus espacial?

Continuo sonhando que sim.

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Escritor e jornalista; www.luispeaze.com/clinicaliteraria/