Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Princípios universais e intolerância religiosa

Sempre intrigante é a relação benevolente das ‘esquerdas’ mundiais com as práticas do terror fundamentalista islâmico. Os pretensos defensores da herança do iluminismo – pois é assim que eles se posicionam – e de toda a retórica de emancipação do sujeito e do universalismo moderno, freqüentemente justificam e dão significado moral às atrocidades cometidas e que ceifam a vida de maneira aleatória em todas as partes do mundo para onde eles querem levar a luz. Lançam mão, para isso, de palavras já esvaziadas de sentido tal a freqüência com que são jogadas ao vento. Imperialismo, opressão, luta revolucionária e de classes são conceitos utilizados para dar coerência onde há somente o inexplicável que reside no seio da intolerância ao Outro.

Em uma primeira e mais superficial análise é aparentemente contraditório que os porta-vozes da luz sejam coniventes com Estados que se misturam com princípios religiosos, já que essa separação Estado-religião é um dos pilares do pensamento moderno. É de se estranhar que aqueles que dizem buscar a justiça equânime nos quatro cantos do planeta se tornem cúmplices na omissão frente ao esfacelamento dos direitos civis e da liberdade de opinião, desfraldadas como bandeiras dos valores iluministas.

Portanto, é no mínimo curiosa, para não dizer ingênua e cega, a análise que Antônio Cícero, articulista do jornal Folha de S.Paulo (‘Ilustrada’, 07/04/2007), faz da declaração de Timothy Garton Ash sobre a ‘conversão’ de um radicalismo islâmico para um radicalismo iluminista da somaliana Ayaan Hirsi. Cícero se indigna com a comparação entre um fundamentalismo religioso e os princípios humanistas da modernidade. Apela para Montaigne, Descartes e para o uso da razão ocidental e os convoca, todos, como seus aliados na luta do bem contra o mal.

Nem tudo é luta de classes

Ops! E é nessa escorregadela que ele deixa passar os pontos onde o tal fundamentalismo radical se encontra de maneira inexorável com os valores pretensamente universais do Iluminismo de Montaigne, Descartes e dos ‘marxistas’ de plantão. Pois não existe nada mais perigoso do que alguém querendo fazer o bem, especialmente para os outros. Ambos os fundamentalismos acreditam ser os detentores legítimos da Palavra e almejam a conversão do mundo para a sua Verdade, que é melhor e mais profunda do que todas as outras.

Ambos os fundamentalismos escoram-se no mesmo princípio básico que é o de levar a luz àqueles que ainda não a têm. Princípio que, como a história nos prova empiricamente, somente foi disseminado à custa de violência e muito, muito sangue derramado em vão. Pois o que trouxe essa herança moderna foi um legado de genocídios e colonialismos justificados como meio de disseminação de seus valores.

O escritor Amoz Oz já disse que o fanático é aquele que nos ama. Que o que todo fanático deseja é a nossa salvação. Seja das trevas da ignorância religiosa, seja da impureza do ateísmo, todo fanático fundamentalista sonha em salvar ora o nosso intelecto, ora a nossa alma, dependendo do lado em que ele está nessa mesmíssima moeda. Os ‘modernos’ deveriam prestar mais atenção no mundo tal qual ele modestamente se apresenta, sem tentar enquadrá-lo à força nos seus moldes. Modelos e paradigmas já há muito superados. Nem tudo pode ser tão perfeitamente formatado. Nem tudo é luta de classes e se restringe à questão política ou de ordem econômica. O ser humano é mais. Mais do que julgam os fundamentalistas que querem o mundo à sua imagem e semelhança – sejam eles iluministas, sejam eles religiosos. A matriz do problema é, sim, como bem elaborou Garton Ash, a mesma.

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Estudante de jornalismo, Belo Horizonte, MG