Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Processo de impeachment, 15 anos depois

Salvo engano, não observei em nenhum veículo de informação, sob qualquer forma de mídia, que no sábado (29/9), foi a data em que a Câmara dos Deputados autorizou, quinze anos atrás, a abertura de processo de impedimento no Senado contra o então presidente da República e agora senador por Alagoas Fernando Collor de Mello.

Caso nossa história recente fosse teatralizada, muitos achariam de gosto duvidoso a trama: um prolongado regime militar, a eleição indireta seguindo as linhas ainda do mesmo regime do opositor Tancredo Neves, as várias mudanças de lado que ocorreram na ocasião (inclusive do então presidente do partido governista, o PDS, para ser vice na chapa de Tancredo), a doença que o acometeu na véspera da posse e todas as dúvidas e preocupações que se seguiram quanto ao poder efetivamente passar dos militares para os civis, o longo calvário de sofrimento de Tancredo, até seu falecimento no Incor, e a posse, com contestações (pois havia quem defendia que deveria ser Ulysses Guimarães alçado ao primeiro posto do Executivo) do vice Sarney e seus cinco anos de governo titubeante, com a hiperinflação, os planos econômicos heterodoxos e tantas outras coisas, mas que permitiu se respirar o ar da liberdade e da ausência de censura.

A entourage de Collor

Pode-se criticar muito o governo Sarney e mesmo o seu papel atual no Senado, mas ele não deixou uma marca de coronel do Norte-Nordeste, e trabalhou a sua imagem de intelectual comedido.

Mas aí aparece a verdadeira eleição direta para presidente, em 1989: os pesos-pesados da política se lançaram ao pleito, como Ulysses, Brizola, Covas, Lula. Mas, devagarzinho, foi ganhando espaço um candidato desconhecido, um governador de Alagoas que, incensado pela mídia, conseguiu, praticamente no último momento (e debate), derrotar Lula: iniciou-se o reinado dos Collor de Mello e asseclas no Brasil.

O medo do ‘sapo barbudo’ – como Brizola se referia a Lula – certamente ajudou, assim como grandes grupos empresariais de mídia. Mas pouco se sabia da entourage de Collor e dos métodos alagoanos de fazer política: demorou para começar a aparecer no noticiário alguma coisa relacionada a desvios de dinheiro, corrupção, LBA e, claro, ao ente gestor de tudo isso, Paulo César Farias.

Reportagens e livros

E no Congresso foram tantas denúncias com explicações estapafúrdias que o impeachment acabou sendo mesmo efetivado, justamente com o primeiro presidente civil eleito depois de tantos anos. E PC Farias fez sua fuga milionária ao redor do mundo, até ser preso e repatriado, pouco tempo ficando na cadeia (um quartel dos bombeiros, creio) e terminar seus dias em mais uma trama novelesca, a do assassinato-suicídio dele e Suzana Marcolino.

Não creio que houvesse tanta divulgação na imprensa, cujos órgãos começaram a competir entre si para ver quem apurava mais anormalidades, do que no impeachment de sir Francis Bacon; talvez só o Watergate de Richard Nixon. Aliás, à guisa apenas de comentário, nossos legisladores copiaram o impeachment anglo-saxão, mas não o recall, que recentemente afastou o governador da Califórnia e permitiu a eleição de Schwarzenegger.

Com Collor fora do poder, assumiu Itamar Franco, dando amplos poderes a Fernando Henrique Cardoso como ministro, o qual acabou por implantar o Plano Real, cujo sucesso o fez ganhar as eleições sem problemas. A reeleição de FHC é outro assunto, assim como o primeiro e o atual governo Lula.

Creio que se gastou boa parte da floresta brasileira em papel com tantas reportagens que apareceram à época dos fatos, assim como livros que brotaram depois analisando a questão. Mas há algo que clama por atenção e não vi por aí ser assinalada.

Comportamento adolescente

Da então chamada ‘República de Alagoas’, passaram homens de confiança de Collor – completos desconhecidos para a Nação – a ocupar posições de destaque: Cleto Falcão, o ‘comandante’ Bandeira, as secretárias, os irmãos de Fernando, a mãe dos mesmos (que bem me lembro que declarava ‘pensar em francês e falar em português’), usineiros locais, Cláudio Humberto etc. Outro político local, que não conseguiu se eleger para o governo de Alagoas mas se tornou líder do governo na Câmara, foi o deputado Renan Calheiros.

Pois bem: acredito que se lembrem que Renan apareceu para a política nacional sob Collor. Mas, recentemente, revisando várias matérias da época – livros etc., por puro diletantismo – achei publicações com todas as letras, e não rebatidas, dizendo que as campanhas de Renan Calheiros, ainda lá atrás, foram todas bancadas pela empreiteira Andrade Gutierrez, com auxílio da então ministra Zélia Cardoso de Mello (que protagonizou outro episódio de república de bananas, com seu namoro com o ministro da Justiça Bernardo Cabral, seu comportamento adolescente, seu abandono pelo mais velho).

A lição de casa

O mais interessante, contudo, é que na crise recente do Senado, o presidente do mesmo, o agora pró-lulista Renan Calheiros, teve como base para o pedido de processo de quebra de decoro parlamentar o pagamento de despesas pessoais pela própria Andrade Gutierrez!

O processo no Congresso, evidentemente, é político, e não criminal. Se fossem seguidas as regras básicas do direito administrativo, com regimentos aprovados pelas próprias Casas, não teria sentido alegar falta de decoro de Renan no passado com a presença da mesma empresa que foi seu calcanhar de Aquiles no presente. Mas a simples lembrança dessa velha ligação Renan-Andrade Gutierrez bem que poderia ser usada como agravante no julgamento, certo?

Claro, se julgamento de verdade fosse. Mas com sessão e votação secretas, nossos (?) representantes no Planalto ignoraram o fato. Na prática, creio mesmo que nada mudaria. Mas pergunto: nossos jornalistas não consultam arquivos? Não faz parte da lição de casa? Basta a notícia atual e a interpretação dada por outros para compor as matérias?

Uma falha, sob todos os ângulos, histórica.

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Médico, São Paulo, SP