Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Profusão de fenômenos fenomenais

Estava fazendo as compras da semana no mercado do bairro quando me deparei com uma capa de revista dizendo: ‘O fenômeno vale’. Bom, que fenômeno é esse? Vale o quê? Comprei a revista como quem entra numa sessão religiosa à espera de um milagre. Ver para crer. Nas primeiras páginas já posso ouvir os acordes do órgão a convidar os presentes para os ‘cantos de entrada’ ao culto. Viro as páginas e começo a descobrir os fenômenos. No editorial, uma carta do editor homenageia um funcionário de saída e celebra a promoção de outro, ambos prata da casa, que ali começaram como estagiário, e chegaram ao comando da Redação da revista. Fenômenos. Talentos.

Viro as páginas, e eis um anúncio de página dupla com uma pick-up ‘nova’. ‘A revolução total’. O fabricante dá três anos de garantia. Outro fenômeno. Mais páginas viradas. ‘O legado de Collor’, anunciando um livro que sairá no segundo semestre. ‘As mudanças que deram origem à economia brasileira moderna’. Fenômeno (de conseqüências questionáveis). Mais páginas. Anúncio de página dupla: ‘Onde nós estamos?’. Resposta: ‘Na quarta marcha’. Fenômeno de consumo. Para a classe A, um carro classe C. Mais páginas. Celulares fotografando a Estátua da Liberdade: 63 bilhões de imagens em câmeras-fone digitais somente neste ano. Que fenomenal!

Mais páginas. Sete executivos em foto de página dupla. Uma mulher entre eles. Empresa número 1 em valor de mercado na América Latina. Fenômeno que vale 40 bilhões de dólares no mercado de ações. Seu líder, 45 anos, um presidente que passou pelo banco como ‘um jovem diretor de perfil agressivo’. Fenômeno. Fotografado ao lado do presidente Lula. Dois fenômenos. É comparado ao líder do maior banco privado nacional, ao líder da maior empresa de cimentos e ao maior produtor de aços especiais do Brasil. Mais outros fenômenos. São chamados de ‘Virtudes da privatização’. Outro fenômeno. Some: ‘Collor’ + ‘Classe A’ + ‘Perfil agressivo’. Resultado: Privatização. Um fenômeno que vale para bem poucos que podem pagá-lo. Lembra o confisco da poupança? E a maior concentração de renda? E o desemprego crescente?

Outras páginas. Chamada dupla de plano de saúde. ‘Porque você é único’. Fenômeno? Quanto vale? Mais páginas. Chamada de evento para ‘experts em negócios e carreira’. Vale apenas mil reais o pacote de palestrantes que apresentarão os fenômenos de ‘Criatividade’, ‘Liderança’, ‘Educar’, ‘Mudanças’. Cada época com seus oráculos e seus mistérios. Estarão presentes os ‘Grandes nomes do universo corporativo’. Falta-nos ainda o Copérnico dessa cartografia do mapa celeste com as estrelas do universo privado. Ficamos privados. Privados de tantas coisas. Estamos na Idade Média (corporativa). Os líderes e seus monges. Os gurus e seus apóstolos. Fenômenos velhos, bem conhecidos. Um mundo repleto de papas. E o verdadeiro, faleceu há pouco. Cada mundo com os papas que merecem.

‘Ele varria o chão’

Páginas! ‘A vida sem o FMI’. Fenomenal! Televisores coloridos (colloridos?) mostram o ministro da Fazenda anunciando a ‘liberdade’. Cai a dívida externa! Amém! De 224 bilhões de dólares para 196 bilhões. Ufa! Estamos 28 bilhões de dólares mais livres. Cadê o fenômeno dessa conta no meu bolso? Mais páginas duplas. Anúncio. ‘A cada sol, um novo você’. Uma mulher abre os braços para o mar. Logo abaixo uma lista de produtos domésticos: detergentes, sorvetes, temperos, absorventes. Fenômenos que mantêm você ‘novo’, de sol a sol. E ainda no mesmo anúncio: ‘Quando a gente faz alguém feliz, torna o mundo melhor’. Finalmente um valor explícito nestas páginas. Sinto-me menos enganado pela chamada de capa que me fez pagar o valor de uma saborosa pizza muzzarela (sem borda recheada) por esse monte de celulose processada e tingida com tintas derivadas do roubo de muitos fósseis que adormeciam no seio da terra e agora viraram insumo industrial.

Sigo páginas adiante. ‘A aposta no produto certo’. Uma montadora de veículos e seu ‘novo’ carro. ‘Saída para a crise’. Aumenta a sua participação no mercado. ‘Produtos matadores’. Fenômenos que valem cada centavo gasto (em propaganda). Fenômeno de marketing, a religião do terceiro milênio. Glórias ao senhor marqueteiro! Outras páginas. Outro anúncio de página dupla. Folhas espelhadas, refletindo a imagem do leitor. Uma folha ‘para seu lado conservador’. Outra para ‘seu lado arrojado’. Dois fenômenos, um para cada perfil, diz o banco que quer o nosso rico dinheirinho.

Mais páginas. ‘Ele varria o chão da farmácia’. Agora é dono de uma empresa de mais de trezentos milhões de reais. Tem 400 empregados. É um próspero atacadista. Delegou os negócios aos três filhos. Valor preservado em família. Fenômeno bastante trivial. Costuma acabar em crimes passionais. No fim, pode pagar caro por esse fenômeno.

País dos inconfidentes

Páginas mais páginas mais páginas. Uma empresa brasileira de ‘call center’, com brasucas trabalhando no uso da língua inglesa, competindo com empresas indianas. Está localizada numa cidade mineira onde 12 mil pessoas já estão matriculadas em cursos de idiomas. Doze mil fenômenos. Páginas, páginas, páginas! ‘Pornografia no escritório’, trata-se de uma pesquisa que revelou que 44% dos trabalhadores americanos acessam sites pornográficos durante o expediente. Fenômeno bastante antigo. Como desde sempre, é um dos que mais valem.

Páginas! ‘Profissões do futuro’. Numa lista de oito carreiras, eis no topo a velha profissão de ‘relações-públicas’. Leiam ‘Maquiavel’, urgente! Páginas! ‘Duas visões sobre o Brasil’. Economistas famosos ‘debatem’ sobre o futuro do país. Isso jamais poderia ser considerado um fenômeno. O nosso país é e sempre foi sinônimo de futuro. Só conjugamos verbos no futuro, na terceira pessoa do plural. Os dois economistas sorriem na foto. Estão rindo de quê? Ou de quem? Como leitor, sinto-me alvo dos risos. Talvez seja o enquadramento das fotos. Dez paginas de pura sabedoria econômica. Valem tanto quanto os produtos vendidos pelas ‘Organizações Tabajara’ e o não menos importante ‘Grupo Capivara’. Valem menos, talvez, pois em nada me servem. Talvez sirva à classe A.

Páginas! Anúncio de empregos. ‘Junior management program’. Quinze linhas no melhor ‘english for portuguese speakers’. ‘We have confidence in you’, assim termina o anúncio. Nós vivemos no país dos inconfidentes. Eu quero traduzir errado a leitura dos ‘confidences’ e me lembrar de que ainda estamos no Brasil. Essa inconfidência que nem lembramos mais. Não vale mais nada essa ‘liberdade ainda que tardia’.

Essa mania

Páginas! Anúncios de educação executiva (e executivo que se preze lá tem alguma educação?). Curso de inglês ‘vivo’ para profissionais (quem matou o inglês? Ressuscitem o bardo William!). Programar ‘líderes do futuro’ (de que serve a liderança do futuro para problemas em tempo presente?). Fenômenos de transformação. De crisálidas a borboletas. Metamorfoses humanas. Humanos? Não sei se passariam num exame, feito por extra-terrestres, para avaliar a nossa humanidade. Fecho a revista com o último anúncio em folha dupla. Um bebê chorando, seus brinquedos em volta, duas mãos adultas estendidas ao infante. ‘Be sharp’, diz o anúncio.

Fim do exame. Ou melhor, da Exame, a revista de negócios da Editora Abril. Um verdadeiro teste de proficiência em inglês. Muitas idéias bastante anglo-saxãs (os talentos, as recompensas, os bem-sucedidos executivos, a vida sacrossanta dos executivos, a ascese capitalista). Muitas palavras na língua inglesa, sem cerimônias ao nosso fenomenal português (que fez de um Fernando Pessoa um ser único, em seus heterônimos, a mapear a insondável alma humana e seus mares ‘nunca dantes navegados’, como nos diria o patriarca Camões).

Exame de páginas duplas de anúncios que seqüestram o espaço da informação, para fazer desse espaço um exercício de sedução da nossa atenção. Fenômenos que a cultura marqueteira norte-americana tanto preza, que ‘valem’ cada centavo gasto em papel, tinta e embalagem especial para a entrega da revista. Passou na Exame? Sorry. Isso que dá ficar educando todo mundo para passar nos vestibulares da vida e dizer que isso é tudo o que se precisa para viver. Fica todo mundo com essa mania de Exame.

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Economista, São Paulo