O noticiário do Jornal Nacional, da TV Globo, do dia 18 de outubro, reprisou reportagem feita para o Fantástico, da mesma emissora. No centro, pessoas beneficiadas com os recursos do programa Bolsa-Família. Além de casos constatados em três municípios – Piraquara, no Paraná, Pedreiras, no Maranhão, e Cáceres, no Mato Grosso –, o Jornal Nacional completou a notícia com casos das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo, agregando opiniões de especialistas e a própria repercussão que a reportagem inicial gerou. O foco da matéria foi o desvio e a apropriação dos recursos por parte de quem não deveria estar no programa governamental, enquanto pessoas verdadeiramente necessitadas não são alcançadas. Não foi reportado nenhum caso – nenhum mesmo – do benefício que o programa está fazendo a quem de direito, os milhões de brasileiros e brasileiras que não têm renda para garantir minimamente suas necessidades mais básicas.
Ou seja, passa-se a notícia de total distorção do Bolsa-Família e são ignoradas as mais de 4 milhões de famílias que já recebem o benefício. Espalhadas pelo Brasil afora, são parte da meta de 11 milhões que o governo pretende chegar até o fim de 2006.
O maior programa social já desenvolvido pelo país, e totalmente desqualificado pela reportagem, terá em 2005 em torno de 6,7 bilhões de reais, chegando perto do orçamento do Ministério da Educação, 7 bilhões de reais. Sua incidência e seu volume de recursos empregados devem mesmo ser alvo da constante vigilância da sociedade – inclusive e especialmente da mídia.
Ainda assim, e sem duvidar dos fatos registrados pelos profissionais da Rede Globo, é impossível não destacar o viés dado à reportagem. Ou será que está tudo tão errado assim? Por que não mostrar o quanto de dignidade muitas famílias recuperam com o pouco de renda que lhes garante o Bolsa-Família? Será que ouvir também famílias beneficiadas pelo programa não seria a melhor forma de avaliá-lo? A falta do outro lado da história reduz em muito o mérito do que a matéria mostra. Na reportagem da TV Globo, tudo aponta para o desvio, para a apropriação indevida. Impossível engolir isso como bom jornalismo e como serviço a uma boa causa.
Sob o manto de uma constatação objetiva – as imagens e os depoimentos são, sem dúvida, eloqüentes – passa-se a idéia do desperdício de recursos públicos no que, talvez, seja a maior inovação no governo Lula. Ao alcançar a população mais miserável e resgatar a sua dignidade, o Bolsa-Família se inscreve no que se tornou uma marca do governo atual, o Fome Zero. Com seu faro de homem do povo, tendo sofrido ele mesmo a fome na sua infância, Lula percebeu o quanto de novo pode representar o seu governo se conseguir erradicar a fome no país. Afinal, trata-se da fome em meio a relativa abundância. Ou seja, nossa fome não é de escassez de alimentos – o Brasil é uma das maiores potências produtoras e exportadoras de alimentos do planeta –, mas de acesso e distribuição, de justiça social enfim.
O Fome Zero como programa começou muito mal, somando-se a muitos outros programas parciais de distribuição de renda, facetando de diferentes maneiras uma população excluída que, no entanto, é uma só. Justamente a unificação dos programas no Bolsa-Família foi o passo fundamental na direção da cidadania e de implantação da renda básica como direito. Juntou-se em um só programa e um só cartão iniciativas como Bolsa-Alimentação, Bolsa-Escola, Vale-Gás, entre outros benefícios.
Vigilância e pressão
O que os milhões de famílias de indigentes mais precisam é de ver reconhecida a sua humanidade e cidadania. Homens, mulheres e crianças em situação de indigência têm fome, muita fome, de comida, água, roupa, escola, cidadania enfim. Com o Bolsa-Família caminhamos decididamente para atender a essas necessidades. É claro que mudanças numa cultura política que ainda trata miseráveis como massa de manobra não se fazem do dia para a noite. Desvios no Bolsa-Família, como mostram a reportagem da Globo e outras tantas, existem. Mas o que realmente precisamos é entrar no mérito do programa para avaliá-lo e aperfeiçoá-lo.
Por favor, Rede Globo, mostre o milagre que os recursos do Bolsa-Família estão gerando – algo em torno de menos de 90 reais por mês, por família, em média – para que possamos corrigir e melhorar a iniciativa! Não posso crer que ainda o cinismo tacanho impere entre nós, influenciando-nos a pensar que o dinheiro do Bolsa-Família teria utilização melhor em investimentos de infra-estrutura ou, pior, no aumento do superávit primário para pagar os gananciosos vampiros que se alimentam da dívida pública. E isto? Não é um desafio eticamente inaceitável?
Sem dúvida, as denúncias precisam ser apuradas e os desvios devem sem punidos. Mas para o bem da democracia precisamos saber a verdade do potencial que significa o Bolsa-Família. À cidadania militante deste país cabe exercer vigilância e pressão para que as políticas públicas voltadas para as pessoas mais excluídas sejam verdadeiras alavancas de democratização e combate às desigualdades. Mas para isso é fundamental termos uma cidadania bem-informada. Esta ainda nos falta – e muito.
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Sociólogo, diretor do Ibase (www.ibase.org.br)