Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a contradição sublima a contravenção

Morador do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, submetido, portanto, aos inúmeros contratempos causados pelos megaeventos realizados várias vezes por ano na enseada do bairro, não me surpreendi com a bagunça causada por mais um deles no último feriado (21 de abril). O que me chamou a atenção foi a forma contraditória adotada pela imprensa carioca e por seus leitores opinativos ao repercutirem o imbróglio. Isto é, na mesma proporção da justa revolta, da crítica e da cobrança estampadas naqueles meios quanto à ausência de cuidados logísticos por parte da prefeitura do Rio para amenizar o impacto que o evento empresarial político-religioso causaria à cidade e aos seus cidadãos, observa-se a omissão da imprensa e da legião de leitores quanto ao fato de, direta e indiretamente, a municipalidade, ou seja, o Estado – constitucionalmente laico – ter financiado a mixórdia religiosa a todos imposta.

De boa vontade poderia considerar que, no Brasil, contradições como essa fazem parte de uma cultura civilizatória historicamente infantilizada pela religião, daí sendo admitido que chefes e pretores de seitas religiosas nacionais e internacionais possam ocupar o espaço público às expensas do Estado para reforçarem a crença dos seus respectivos rebanhos. Porém, avaliando a situação toda na condição talvez minoritária de cidadão ateu e materialista, somente posso considerar a omissão da imprensa e dos leitores opinativos como sintoma de uma cultura civilizatória esquiva na qual o cinismo como meio e a hipocrisia como fim prevalecem em todos os aspectos das nossas relações sociais. Nesse caso, a omissão relatada não se trata exatamente de uma contradição, mas sim, de uma contravenção penal recorrente que tem sido assumida de forma cínica e hipócrita por todos: governo, empresas religiosas, imprensa e leitores.

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Professor universitário, Rio de Janeiro, RJ