Morador do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, submetido, portanto, aos inúmeros contratempos causados pelos megaeventos realizados várias vezes por ano na enseada do bairro, não me surpreendi com a bagunça causada por mais um deles no último feriado (21 de abril). O que me chamou a atenção foi a forma contraditória adotada pela imprensa carioca e por seus leitores opinativos ao repercutirem o imbróglio. Isto é, na mesma proporção da justa revolta, da crítica e da cobrança estampadas naqueles meios quanto à ausência de cuidados logísticos por parte da prefeitura do Rio para amenizar o impacto que o evento empresarial político-religioso causaria à cidade e aos seus cidadãos, observa-se a omissão da imprensa e da legião de leitores quanto ao fato de, direta e indiretamente, a municipalidade, ou seja, o Estado – constitucionalmente laico – ter financiado a mixórdia religiosa a todos imposta.
De boa vontade poderia considerar que, no Brasil, contradições como essa fazem parte de uma cultura civilizatória historicamente infantilizada pela religião, daí sendo admitido que chefes e pretores de seitas religiosas nacionais e internacionais possam ocupar o espaço público às expensas do Estado para reforçarem a crença dos seus respectivos rebanhos. Porém, avaliando a situação toda na condição talvez minoritária de cidadão ateu e materialista, somente posso considerar a omissão da imprensa e dos leitores opinativos como sintoma de uma cultura civilizatória esquiva na qual o cinismo como meio e a hipocrisia como fim prevalecem em todos os aspectos das nossas relações sociais. Nesse caso, a omissão relatada não se trata exatamente de uma contradição, mas sim, de uma contravenção penal recorrente que tem sido assumida de forma cínica e hipócrita por todos: governo, empresas religiosas, imprensa e leitores.
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Professor universitário, Rio de Janeiro, RJ