O problema de ser a favor de certas atitudes e contra outras é quando caímos de contradição. Por exemplo, muitos judeus que estão na diáspora batem palmas quando os colonos expandem os assentamentos e acabam servindo não mais do que como massa de manobra de Netanyahu. Mas e o traficante que vive no Rio de Janeiro, não pode impedir a passagem das forças policiais, que desde segunda-feira (22/11) têm operado como um exército numa guerra entre nações? É cabível que nessa suposta guerra ao crime seja usado um tanque-anfíbio? Mais parece uma parada militar do que esse algo sério no que o governo do estado tem transformado, com a evidente subscrição da Prefeitura. Pois, se vocês querem ver monstros espalhados em bandos pela cidade, basta ver a atuação do Bope. Afinal, crueldade por crueldade, eles deveriam ser os menos irracionais, por serem representantes daquilo que eu cada dia menos reconheço como o Estado Democrático de Direito. Entretanto, é difícil que pessoas conservadoras tenham o real entendimento disso, uma vez que o Estado, aqui representado pela Polícia, nunca deliberou sobre o ato de arrombar a casa dele e sair vasculhando todo o interior da casa dele.
Não se trata aqui, por exemplo, de achar certo que criminosos sequestrem uma família e façam as pessoas reféns; a questão é muito maior do que quem quer que seja passar horrores nas mãos de criminosos. A dor de cada um, apenas cada um pode sentir, e quanto a isso não discuto. Mas a discussão é sobre outro assunto: no circo do Cabral, o picadeiro já está montado desde 2007 para que ele possa ser a atração principal até 2014, agora que foi reeleito e as cúpulas dos governos municipal e estadual precisam enfiar nossas goelas abaixo e vender sem qualquer escrúpulo as ideias de Copa do Mundo e Olimpíadas.
Polícia não discerne trabalhador de bandido
Na cabeça desses maculados indivíduos, a organização da cidade para estes megaeventos passa, necessariamente, pela ‘limpeza’ e maquiagem de todos ou pelo menos grande parte do que eles consideram nossos cancros sociais. Portanto, é importante para eles que os anos-marco de 2014 e 2016 estejam desde cedo na boca do povo, pois só assim se poderá fazer como no Pan-Americano, quando, dois meses depois dos Jogos, entrou-se com força total no Complexo de Alemão. As estatísticas oficiais indicam 19 mortos, quase nenhum morador que tivesse envolvimento com o tráfico, mas tem famílias que até hoje não voltaram a ver alguns de seus parentes. E então, é para acreditar no discurso implícito de que as vidas dessas pessoas têm menos valor do que as de quem mora na parte plana da Zona Sul e na Barra da Tijuca?
Mas, enfim, não é à toa que o governador e, por tabela, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) estão respondendo com força desproporcional, ferindo e tirando a vida de inocentes que vivem nas comunidades carentes/áreas de periferia. De mais a mais, sem qualquer estudo prévio, que poderia evitar muitas baixas de civis inocentes, o governo estadual achou que era chegada a hora de botar UPP no Complexo da Penha (Caixa D´água, Chatuba, Caracol, Fé, Grota, Quatro Bicas e Vila Cruzeiro), uma das áreas que melhor reflete o relevo acidentado, constituído de morros por todos os lados, que explica o crescimento acentuado de favelas em áreas de encosta por toda a cidade.
É óbvio que sou contrário a qualquer forma de opressão, seja praticada pelo Estado ou pelo tráfico, mas o Poder Público nunca – e eu faço questão de repetir –, nunca esteve presente nas áreas que estamos vendo na mídia todos os dias desta semana. Sinceramente, quem aqui já tinha ouvido falar em Vila Cruzeiro antes do assassinato do Tim Lopes? E mais, quantos de vocês já andaram, e não apenas passaram de carro, por lugares como Vila Cruzeiro, Cordovil, Irajá, Mesquita? Não se trata de apoiar as rajadas de bala dos traficantes, mas de buscar compreender que o Estado, quando ‘visita’ esses lugares, em tempos de fortes conflitos armados como este último que a própria Polícia instaurou, não discerne trabalhador de bandido, muito menos age no sentido de combater o que realmente importa: o tráfico de armas.
É preciso pacificar as forças policiais
Desde sempre, a relação entre polícia e criminalidade significou uma política de enxugar gelo, apreendendo uma droguinha aqui, um fuzil ali. Mas, além de não combater o que tem alto potencial ofensivo – o tráfico de armas –, quem toma porrada na cara e perde R$ 50, R$ 100 em blitz, é o pequeno consumidor de drogas ilícitas, independente de ser rico ou pobre, preto ou branco, e não as quadrilhas que atuam no asfalto, ou em nome do chefão do tráfico de determinado morro, que não vão vir ‘aqui embaixo’ e se arriscar a ser presos, ou são esses bandos formados em sua maioria por jovens bem-nascidos que comercializam e traficam drogas sintéticas, como já vimos tantas vezes eles serem presos, ainda que soltos quase imediatamente.
Segurança pública é assunto da maior importância, que não pode ser tratado a partir da defesa dos interesses de uns poucos, só que o Estado não pode ser militarista, fascista, contra as áreas periféricas, criminalizar o pobre, esconder dezenas de cadáveres e dizer que está tudo bem, simplesmente porque nas zonas de maior concentração de moradores com alto poder aquisitivo tudo continua como antes. O problema é que tudo também continua como nas áreas da cidade às quais o Estado nunca demonstrou interesse social, a ponto de desenvolvê-las economicamente, mas apenas no intuito de reprimir com uma Polícia privatizada, que obedece aos anseios das elites, e não com a implementação de políticas públicas inclusivas. O que, no final das contas, traria resultados no longo prazo, mas traria resultados. Algum vulto de melhora tomou conta da cidade com a implantação das UPPs, mas, se o que exigem as elites sócio-econômicas – da qual eu faço parte – é a re-expulsão dos pobres para áreas sempre e cada vez mais afastadas do centro da cidade, não haverá pacificação de morro que dê jeito. É preciso, antes de mais nada e acima de tudo, pacificar as nossas forças policiais.
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Estudante, Rio de Janeiro, RJ