Esta não pretende ser uma brincadeira de mau gosto. Nem com os pilotos, co-pilotos e comissários da Gol Linhas Aéreas e nem com moradores de rua, que sofrem ainda mais (se é que isto é possível) nestes tempos de frio. Talvez seja apenas uma provocação, um motivo, uma razão para iniciar um debate sobre os muitos atrasos e cancelamentos de voos da Gol nos últimos dias, que a imprensa não hesitou em rapidamente classificar de ‘caos aéreo’, sob uma perspectiva diferente. Diferente apenas. Nem maior, nem menor e nem melhor.
O recente documentário do controverso diretor americano Michael Moore (diretor de Farenheit 9/11, Sicko, Tiros em Columbine, entre outros) Capitalismo: uma história de amor (Capitalism: a Love story, 2009) traz uma excelente reflexão, e uma forte crítica, sobre os efeitos que este sistema econômico tem causado ao redor do mundo. Com a ironia sempre presente em suas obras, Moore mostra algumas classes de trabalhadores que a cada ano veem suas condições de trabalho se deteriorarem, seus salários ficarem cada vez mais defasados e suas famílias empobrecendo e perdendo suas casas.
Então, vem a pergunta: o que o documentário de Michael Moore sobre o capitalismo e o aumento da pobreza tem a ver com uma classe tão bem remunerada como a dos pilotos da aviação civil? Pelo menos essa é a ideia de que uma grande parte das pessoas possuem. Pilotos, co-pilotos e comissárias sempre muito bem vestidos, com um sorriso no rosto, viajando pelo mundo todo. Quanto glamour.
Deterioração das condições de trabalho
Parece que o glamour fica mesmo por conta do imaginário que muita gente construiu sobre estas classes ao longo dos tempos. Tempos onde as companhias serviam bebidas importadas e verdadeiros banquetes, servidos e degustados com a ajuda de belos talheres, em aço inoxidável e com a logomarca da empresa. As barrinhas de cereal, os copos e garfos de plástico estão aí para não me deixarem mentir. E parece que esta depreciação não ficou só no cardápio. E também não ficou só no Brasil. E é aqui que entra a resposta àquela pergunta anterior sobre onde o filme de Moore se encaixa.
Uma parte do documentário do diretor americano traz entrevistas e depoimentos de pilotos e co-pilotos de empresas da aviação civil americana que precisam arrumar um ou mais empregos para pagar suas contas. Homens e mulheres que têm mais de 10 ou 15 anos de voo e precisam trabalhar como garçonetes, babás ou passear com cães para completarem suas rendas. Uma comparação de rendimentos mostra que trabalhar em uma lanchonete de fast food é muitas vezes melhor, em termos de ganhos reais por ano, do que ser piloto de uma empresa aérea comercial. A situação da desgastante jornada de trabalho e constante desvalorização desta classe nos Estados Unidos é ilustrada, da maneira mais triste possível, com um acidente que matou mais de 50 pessoas e que teve, segundo o documentário, como uma das prováveis causas uma tripulação que trabalhava com uma escala desgastante e estressante, física e psicologicamente.
Certamente, a tripulação vitimada neste acidente, nos Estados Unidos, não tinha sua escala de trabalho definida pelo Crewlink, que é a nova ferramenta que gerencia e aloca os tripulantes da Gol. Mas, pela quantidade de reclamações (somente no mês passado foram mais de 200 reclamações ao SNA e a Anac analisa 520 reclamações trabalhistas de empresas aéreas brasileiras) e denúncias que funcionários da Gol vêm fazendo junto ao Sindicato Nacional dos Aeroviários (SNA), o Crewlink está fazendo com que as tripulações não tenham o descanso necessário. Segundo Carlos Camacho, diretor do SNA, a Gol foi a campeão de reclamações este mês e seus funcionários estão sendo submetidos a mudanças repentinas na escala de trabalho e sendo obrigados a trabalhar durante várias madrugadas seguidas.
Mais do que os atrasos e cancelamentos de voos e as filas intermináveis no check in, o documentário de Michael Moore nos alerta para um problema que pode ser muito maior. A deterioração das condições de trabalho em uma profissão que tem, por dia, milhares de vidas em suas mãos. Moore ironiza e diz que não gosta da ideia de pensar que, durante os voos, alguns pilotos e co-pilotos possam estar catando moedas no meio dos assentos. E, nos créditos ao final de seu documentário, faz uma piada que pode trazer uma reflexão para estes dias de ‘caos aéreo’ no Brasil.
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Jornalista, São José dos Campos, SP