Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando sai o jornalista, o jornal vira quitanda

Abril de 1977. A secretária do doutor Júlio de Mesquita Neto, o Mesquita responsável por O Estado de S.Paulo, o mais influente jornal do país, telefona da sede para o escritório de Belém. O patrão manda um recado (em média, fazia dois ou três contatos anuais): ele e o irmão, Ruy Mesquita, que comanda o Jornal da Tarde, já haviam lido a série de reportagens que eu pautara, coordenara e escrevera, juntamente com outros seis repórteres. Os textos, na sede havia três semanas, agora estavam com Rubens Rodrigues dos Santos, um dos editorialistas do jornal, considerado na ‘casa’ como especialista em Amazônia. Eu devia acertar com ele a liberação das reportagens. Os Mesquita lhe delegaram essa competência.

Fui a São Paulo para um dia de dura conversa com o porta-voz. Ele questionou vários trechos da série, programada para sair ao longo de uma semana. As reportagens colocavam em má situação alguns bandeirantes paulistas, agora empenhados em desbravar a fronteira amazônica, e se opunham à retórica desenvolvimentista no prolongamento da ‘corrida para Oeste’, uma das sagas de então. Muitas páginas estavam assinaladas com tinta vermelha. Para cada tópico tive que dar explicações e superar as contestações de Rubens, profissional veterano e escolado.

Mas aquilo era troco. Dois meses antes eu fora convocado para comparecer perante a ‘seção de terras’ do Conselho de Segurança Nacional, em Brasília. Provavelmente fui o primeiro jornalista a se reunir com os militares desse departamento, na própria sede do CSN, reduto reservado do ‘sistema de segurança nacional’, temido por jornalistas, vedado e hostil a eles. A repórter da sucursal de Brasília, que participou do levantamento sobre a ‘questão’ agrária e fundiária na Amazônia, simplesmente deixara a pauta (com 10 laudas, minuciosa) na sede do Incra.

Alarmado com o conteúdo, o Incra repassou a pauta imediatamente para o CSN, fonte da doutrina oficial sobre a ‘integração’ da Amazônia. O secretário-geral do conselho telefonou para o doutor Júlio Neto e lhe pediu que fizesse o autor da pauta comparecer ao CSN em data já marcada. Iria ser submetido a uma sabatina com os militares que, exatamente três meses antes, conseguiram aprovar no Congresso uma lei (a 6.383) sobre a demarcação de terras devolutas da União, que consideravam um avanço estupendo na regulamentação do uso da terra na região. A pauta punha em dúvida a eficácia dessa lei para resolver problemas, como os conflitos de terra.

Viajei para Brasília e enquanto entrava, sozinho, na sede do CSN, um advogado ficava de plantão para providenciar o remédio legal cabível, caso eu não saísse da reunião até um prazo razoável. A repórter, com a consciência pesada, me acumulou de desculpas e gentilezas, temendo o pior em função de seu ato ‘destrambelhado’ (nem chegara a ler a pauta, deixada no Incra para as respostas devidas). Mas tudo deu certo. A conversa foi ótima, não sofri qualquer constrangimento e pude escrever o que quis, a partir da consideração ao que ouvi dos oficiais da ‘seção de terras’ do CSN.

Ponto de chegada

Depois da sabatina de Rubens Rodrigues, a única restrição que subsistiu foi ao nome de um fazendeiro, amigo íntimo da família. Mas o episódio que o citava era completamente lateral na história – apenas acrescentava mais um exemplo a outros três, a propósito de imprecisão de títulos de propriedade de terra. Era um minúsculo boi de piranha, que valia sacrificar em proveito da enorme manada.

A reportagem ocupou mais de 40 páginas do meu segundo livro, Amazônia: no rastro do saque, lançado em 1980 por uma editora também paulista, a Hucitec, a instâncias de um intelectual igualmente paulista, o sociólogo José de Souza Martins. São Paulo, capitão-do-mato da destruição era, também, sua consciência crítica, ou ao menos albergava com uma mão parte da reação ao que com a outra fazia.

A série acabaria recebendo menção honrosa nacional do Prêmio Esso daquele ano. No dia em que foi publicada a primeira das várias páginas, que se espalharam pela semana, a reportagem mereceu o mais importante dos editoriais do Estadão. A autoria era fora de dúvida: Rubens Rodrigues dos Santos, of course. Sem condições de impedir a publicação das matérias, que fustigavam os bravos bandeirantes paulistas, ele tratava de prevenir os leitores do tradicional matutino contra aquelas aleivosias publicadas em outras páginas. O editorial só faltou dizer que aquelas palavras tinham sido escritas por lúcifer, ou demônio de pior extração moral.

No final da tarde, quando o exemplar do dia me chegou às mãos, li e reli o editorial, que remetia o leitor para nossas execráveis reportagens, entre risos. Achava erradas ou injustas aquelas considerações, que já contestara no tête-à-tête com Rubens. Mas isso era o que menos importava. O importante era que o jornal comandado pelos Mesquita acolhera um produto com o qual não apenas não concordava, mas do qual divergia em gênero, número e grau. Mas que respeitava.

Afinal, nem Júlio Neto nem Ruy Mesquita (este, ainda vivo) eram quitandeiros, com todo respeito aos nossos muy nobres fornecedores de folhagens e tubérculos, de outra especialização, contudo. Eram autênticos jornalistas. E a matéria de sua empresa era jornalismo. Se nosso texto tinha consistência bastante para vencer as barreiras que lhe foram opostas, de forma explícita pelo editorialista e, implicitamente, por seus patrões, tinha todo direito de romper a fita no ponto de chegada. Ou passar o bastão ao distinto leitor, que dele fizesse o uso que bem lhe aprouvesse, no exercício de um dos princípios mais democráticos da vida civilizada: o livre arbítrio.

Modelo esgotado

Relembro com saudade profunda esse episódio, que hoje parece expurgado do cotidiano de nossas empresas jornalísticas, enquanto não me canso de lamentar episódio exatamente oposto que está vivendo um grande jornalista brasileiro. Nas generosas ondas do projeto que pretendia dar ao Estadão um estofo nacional verdadeiro, que nenhum outro jornal teve antes ou depois dele, o paraense Walter Rodrigues saiu de Belém, exatamente em 1977, para ser correspondente em São Luís do Maranhão, substituindo Raymundo Costa, que seguia para Brasília. Desde então, Walter se tornou uma afiada consciência crítica local e uma indispensável fonte de referência para todos que quiserem saber das verdadeiras histórias no feudo da família Sarney.

Tanto pelo seu texto lustroso como por sua conversa enfeitiçadora, Walter Rodrigues conquistou arduamente o direito ao respeito e à consideração em tudo que diga respeito ao Maranhão, da política à economia, da lídima fofoca à alta cultura. Não deitou na cama da fama que construiu por absoluto desprezo por essa comodidade (o que lhe acarretou sérios problemas de saúde) e pelos pregos que os poderosos tentam constantemente fixar em sua passagem, tentando-o como faquir da resistência.

Walter costuma desagradar a gregos, troianos, gonçalvinos e timbiras com sua verve e iconoclastia, com sua rara capacidade de desmontar estratagemas e ardis, demolindo álibis. Mas os inimigos que produziu resultam da incapacidade que têm os poderosos de obter silêncio quando gritam com pessoas que esperam do diálogo explicações, argumentos, demonstrações, não ignorantes decibéis. Sem fatos, tendem a mandar às calendas gregas um dos mais deletérios e infelizes hábitos nacionais: o ‘bate-carteira’ daqueles que consideram o código da divindade cobrar do interlocutor uma resposta obediente e humilhante ao tristemente célebre ‘sabe com quem está falando’? Walter só quer saber se for para bem se informar.

Ele está sempre falando com pessoas de carne e osso, embora matéria mais abstrata seja construída com seu precário barro: a história. Jornalista em tempo integral e cético nos intervalos, os milhares de textos que produziu em três décadas de Maranhão constituem a melhor e mais elucidativa reconstituição do que houve entre o primeiro momento, quando os maranhenses viviam no vácuo memorialístico em relação à miragem da Atenas brasileira, para glória de tantas cabeças privilegiadas, como o mítico Gonçalves Dias e o minucioso Aluízio de Azevedo, e o desconcertante dia-a-dia, que se lhe pespega à ilharga da infausta ilha uma das maiores fábricas de alumínio do continente – e, em projeto, um dos principais pólos siderúrgicos do mundo.

Walter tentou dar vida impressa aos seus textos em uma publicação semelhante ao Jornal Pessoal, com existência autônoma. Por motivos vários, mas, sobretudo, pela inanição e insanidade dessa via, seu Colunão acabou tendo abrigo relativamente certo e seguro durante oito anos como encarte no Jornal Pequeno. Esse diário, já com 56 anos, é – ou era – um fenômeno. Tem sua razão de ser na originalidade da biografia do patrono, Ribamar Bogéa, que fez fortuna (pequena, como cabível) à margem dos grandes interesses do (e no) estado, e num certo espaço que se abriu na trajetória do Maranhão, da terra do ‘já teve’ à terra do ‘não terá’, entre o esgotamento do modelo antigo e a velocidade de montagem e amadurecimento do modelo novo.

Martírio final

Ao acolher o ‘jornal pessoal’ de Walter Rodrigues, o dono do Jornal Pequeno, sem disso ter exata consciência (nem consistência), agiu como um Mesquita maranhense do período em que o Estadão, resistindo à censura política, criou uma práxis de resistência e de identidade que o tempo e a desídia se incumbiram de erodir. O sonho de uma noite de verão democrático durou até bastante, no caso da relação entre Walter e o Jornal Pequeno, mas acabou no final do ano passado.

Por razões que sempre são nada mais do que pretexto, o empresário Lourival Bogéa, sucessor de Ribamar, criou uma maneira de inviabilizar a coabitação democrática e despejou do antigo espaço democrático o seu produto mais nobre, dando razão àquela observação – geralmente amarga – de que pérolas destinam-se a porcos quando estes não percebem o valor do que se lhes fornecem.

Bravo e resistente, Walter perdeu o privilegiado contato que tinha todos os domingos com os leitores do Jornal Pequeno, mas mantém sua produção acessível através de um blog. Já planeja voltar à forma pioneira, como a do Jornal Pessoal, realmente independente (embora pesadamente sacrificante), porque deixou muitos órfãos na leitura da imprensa convencional. Os muitos que, sem seu maná dominical, abandonaram o jornal que o serviam e estão à cata de novo contato com a verdade.

Walter Rodrigues deverá achar uma forma de atendê-los, ainda que lhe seja desgastante (provavelmente em demasia). Mas é pouco provável que a grande empresa jornalística, ao descartar o melhor que contém, encontre o caminho para sair da crise que lhe reduz o público. Simplisticamente – e falsamente também – seus pregoeiros continuarão a dizer que o encolhimento deve-se às novas mídias, como a internet e sua cornucópia de canais. É mentira.

O jornalismo se autoflagela e se expõe ao martírio final quando se imagina uma quitanda, repleta de bananas e abacaxis, mas sem seu produto autêntico: o jornalismo. E ninguém faz melhor jornalismo do que os bons jornalistas. Walter Rodrigues é um desses exemplos. Mais um, infelizmente, expurgado do contato com o grande público. Para que, dessa forma, as páginas de jornal se tornem prateleiras de quitanda, mais ao gosto dos que agora as fazem imprimir.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal, de Belém (PA)