A visita do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil ganhou foros de notícia ‘quente’ quando uma informação veiculada pela Irna, a agência oficial de notícias do Irã, caiu como uma bomba nas redações, um dia antes do evento. O cancelamento da visita, por iniciativa do próprio convidado, configurou-se no que popularmente chamamos de ‘tapa com luvas de pelica’. A falta de tato da diplomacia brasileira em manter o convite a um dirigente a quem censurou publicamente quinze dias antes, favoreceu uma atitude que, analisada a posteriori, tem até uma certa lógica.
Na reportagem da Folha Online de 21/04/2009, ‘Brasil critica Irã sobre racismo às vésperas de visita de Ahmadinejad ao país’, o noticioso já dava destaque a nota emitida pelo Ministério de Relações Exteriores face ao discurso do líder iraniano na Conferência sobre Discriminação Racial, realizada em Genebra: ‘O governo brasileiro tomou conhecimento, com particular preocupação, do discurso do presidente iraniano que, entre outros aspectos, diminui a importância de acontecimentos trágicos e historicamente comprovados, como o Holocausto.’ E prossegue: ‘O Brasil aproveitará a visita de Ahmadinejad ao país, prevista para o próximo 6 de maio, para reiterar ao governo iraniano suas opiniões sobre esses temas.’
Também o Estadão, em sua edição de 05/05/2009 (‘Irã viu hostilidade em reação do Brasil ao discurso na ONU’), lembra que, além da nota do Itamaraty, o ministro de Igualdade Racial, Edson Santos, condenou veementemente a posição do Irã. A embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, igualmente protestou, afirmando que a ONU não deveria ser palco para a intolerância. Por sua vez, o embaixador do Irã nas Nações Unidas, Ali Reza Moaiyeri, qualificou de ‘lamentável’ a posição brasileira e o diplomata Hussein Rezvani, um dos principais negociadores da chancelaria iranina, não viu como um ‘bom sinal’ os comentários da missão brasileira diante da visita já programada de Ahmadinejad.
Efeito Borboleta
Ora, frente a tais indícios, qual o dirigente em sã consciência que se arriscaria a realizar uma visita para ficar à mercê de alguma espécie de constrangimento ou levar um ‘pito’ de seu anfitrião, mesmo que fosse só para inglês ver?
Se nos dias que antecederam à anunciada presença de Ahmadinejad no Brasil houve algumas manifestações isoladas de segmentos da sociedade em repúdio à visita, após o seu cancelamento o tema desabrochou em manchetes, aguçando a verve de editorialistas e formadores de opinião, como Ali Kamel (O Globo) e Carlos Heitor Cony (Folha de S.Paulo), para citar dois. De uma tacada, o respeitável público ficou sabendo, entre outros podres do regime de Ahmadinejad, que o Irã é uma teocracia abominável onde a pena de morte não poupa nem os menores de idade. Somente nos primeiros meses de 2009 já tinham sido executadas 141 pessoas, muitas delas por crimes religiosos, políticos ou de opinião.
Esse efeito borboleta em nossa imprensa, apesar de positivo, ainda não foi o ideal. Para Alberto Dines, a cobertura da não-visita foi ‘claudicante, errática e insuficiente’. No artigo ‘Bye Bye, Ahmadinejad’ (5/5/209), Dines assinala que ‘ninguém perguntou por que razão a Argentina foi excluída do roteiro’, que incluiu apenas a Venezuela de Hugo Chávez, o Equador, um clone do primeiro, e o Brasil. De fato, o atentado à sede da Amia (Associação Mutual Israelita Argentina) em 1994, que matou 86 pessoas e feriu 300 em Buenos Aires, ainda é uma chaga aberta na sociedade portenha e uma questão não resolvida, apesar da acusação formal do governo argentino contra o regime de Ahmadinejad.
A omissão de informações essenciais por despreparo ou falta de disposição de nossa imprensa é analisada por Dines que, nesse caso específico, considera que ‘ao leitor-cidadão brasileiro foi sonegada uma informação de capital importância sobre um chefe de Estado, considerado persona non grata pela Argentina e que, não obstante, seria recebido aqui como hóspede do governo’.
Jornal estigmatiza protesto
Mas, nesse bater das asas da borboleta, uma outra notícia de interesse dos brasileiros veio a reboque do tema: a preferência do Itamaraty pelo egípcio Farouk Hosni, de conhecidas posições antissemitas, para dirigir a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em detrimento ao nome do compatriota Marcio Barbosa, atualmente diretor-adjunto da instituição. As alegações, como de hábito, são repetitivas e se apóiam naquela frase-jargão mais do que manjada de fortalecimento das relações do Brasil com o mundo árabe. Porém, o egípcio é acusado de ameaçar queimar livros escritos em hebraico quando foi ministro da Cultura de seu país. Isso não conta para a nossa diplomacia?
Despreparo e superficialidade à parte, o que reinou em nossa imprensa nos dias anteriores à programada visita, foi uma flagrante tendenciosidade na composição dos títulos em relação à passeata de protesto que ocorreu na zona sul do Rio de Janeiro.
Repercutindo a deixa da agência espanhola EFE, que deu uma conotação maldosa ao evento associando-o prioritariamente a ‘judeus e homossexuais’, veículos como Zero Hora, do Rio Grande do Sul, o Diário Catarinenese e Gazeta do Povo, do Paraná, G1 e centenas de sites de notícias e blogs se fixaram no duo ‘judeus e gays’ para, de uma maneira subliminar, desmerecer o evento e caracterizá-lo como uma manifestação de pessoas ‘diferentes’, não-representativas da sociedade brasileira. O que seria uma inverdade, já que 99,9% dos participantes eram estudantes, professores e profissionais liberais, enfim cidadãos brasileiros.
De outra forma, o jornal O Globo (4/5/2009) também contribuiu para estigmatizar o protesto ao ilustrar a matéria com uma baita fotografia colorida onde se via um grupo com a bandeira do estado de Israel. Entretanto, dezenas de bandeiras brasileiras foram empunhadas pelos manifestantes durante o trajeto.
Apetite pelo solo brasileiro
Aliviado pelo cancelamento da visita, o secretário Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, revelou que o presidente Lula, caso se encontrasse com Ahmadinejad, daria o seguinte recado: ‘Assim não dá.’ É o que escreve Jamil Chade na reportagem publicada pelo Estadão em 7/5/2009 (‘Lula daria recado a Ahmadinejad, diz ministro’). Para Vannuchi, esse era um momento ruim, já que questionar o Holocausto é gravíssimo e demonstra, de alguma forma, uma simpatia por Adolfo Hitler.
Contudo, outro motivo de preocupação pode estar encoberto pelo véu do que se convencionou rotular de expansão do comércio bilateral. Uma indiscrição do embaixador iraniano no Brasil, Mohsen Shaterzadeh, deixou à mostra um dos itens mais preocupantes do tal pacote comercial que prevê a compra de até 400 mil hectares ou 4 mil quilômetros quadrados de terras brasileiras – o equivalente a 400 mil campos de futebol – para serem hipoteticamente utilizadas no plantio de soja e milho a serem exportados para o próprio Irã e outros países. Como medida de comparação, a Cisjordânia tem aproximadamente 5,7 mil quilômetros quadrados.
Com dólares suficientes para a aquisição de extensas glebas de terra, a comitiva iraniana, que acabou se reduzindo a 60 empresários, ministros e autoridades políticas, também está de olho na produção de petróleo e no gás brasileiro. Mas o que espanta é esse apetite pelo solo brasileiro, já que o Irã tem 1 milhão e 650 mil quilômetros quadrados de extensão territorial, espaço suficiente para alimentar os 65 milhões de cidadãos iranianos. Convênios de cooperação tecnológica para o aumento e a melhoria da qualidade da produção agrícola são usuais entre países, mas a venda de terras por um dos participantes é no mínimo sui generis.
Fazendo das tripas coração
De acordo com a matéria ‘Visita polêmica e estratégica’, assinada por Jailton de Carvalho e Eliane Oliveira (O Globo de 3/5/2009), acertos prévios sobre a questão já haviam sido realizados. E, para garantir esse e outros compromissos comerciais, o Irã, inclusive, estaria disposto a depositar parte das suas reservas internacionais no Brasil, segundo autoridades brasileiras presentes ao encontro com a missão empresarial iraniana, ocorrido em São Paulo (Valor Econômico de 8/5/2009: ‘Irã estuda aplicar parte das reservas no país para garantir comércio’). Um tema que merece receber melhor atenção de nossa imprensa.
No mais, vamos torcer para que o termo ‘adiada’ seja mais um eufemismo sacado do catálogo de expressões da diplomacia brasileira e que, ao contrário dos personagens de Samuel Beckett, que passam a peça inteira na expectativa de um visitante que não vem (Esperando Godot), a democracia brasileira nunca mais tenha que fazer das tripas coração para esperar Ahmadinejad. Porque, citando o genial alemão Brecht em seu imortal poema, ‘um dia vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei…’
******
Jornalista, Rio de Janeiro, RJ