Da mesma forma como ainda esconde sua participação há 34 anos na trama para difamar o governo chileno de Salvador Allende, acusado de ameaçar a liberdade de imprensa e o jornal El Mercurio, a grande mídia do Brasil, acompanhando a dos EUA, teima em esconder a verdade sobre a rede RCTV e a decisão do governo venezuelano de não renovar sua licença, expirada domingo (27/5).
Recordei em coluna anterior como nossa mídia corporativa – de O Globo dos Marinho à Veja dos Civita & Mainardi, passando pelo Estadão, Folha, etc. – fez a mesma coisa na campanha a favor de El Mercúrio. Agustín Edwards, dono desse jornal chileno, fez várias reuniões em Washington com o presidente Richard Nixon e o próprio diretor da CIA, Richard Helms, preparando o golpe militar.
Consumada a operação e instalado o ditador militar Augusto Pinochet, veio o banho de sangue que horrorizou o mundo – e aí sim, fim da liberdade de imprensa. El Mercurio, que se apresentava como herói da liberdade, o que fez? Virou porta-voz oficioso da ditadura – papel semelhante ao das organizações Globo no Brasil pós-1964. Será o que agora querem El Mercurio e O Globo para a Venezuela?
Aquele ‘Dossiê El Mercurio‘
O problema em situações assim é que os veículos da grande mídia mentem e o governo dos EUA também. Os primeiros jamais o admitem, mesmo depois do fato consumado. Já em Washington existe uma prática saudável, hoje encorajada ainda pela Foia, Lei da Liberdade de Informação: o levantamento, às vezes antes do prazo oficial, do sigilo sobre documentos secretos da diplomacia e da espionagem.
Isso permite que a verdade apareça, não graças à mídia. O ‘Dossiê El Mercurio‘ foi publicado em 2002, 29 anos do golpe do Chile, pelo pesquisador americano Peter Kornbluh na Columbia Journalism Review, de Nova York. Antes mesmo de Allende tomar posse, segundo os documentos, o dono de El Mercurio já se reunia com o diretor da CIA, discutindo o momento mais oportuno para ser desfechado o golpe.
Detalhe revelador no complô contra Allende na mídia, que denunciava a ameaça ao El Mercurio e à liberdade de imprensa, foi a participação da SIP, a entidade dos donos de jornais do continente). Esta distribuía material, até editoriais prontos. O Globo, talvez o mais diligente participante da campanha, é um dos que o recebiam. Nunca fez autocrítica, jamais contou ao leitor que estava no complô da CIA.
O Roberto Marinho de lá
Fair (Fairness and Accuracy In Reporting), a mais atuante e profissional das organizações dedicadas a monitorar a grande mídia dos EUA, mostrou no último dia 25 como os diferentes veículos foram unânimes na avaliação e na conclusão, idênticas às da mídia brasileira: ao negar a renovação da licença da RCTV, disseram, o governo Chávez age com brutalidade contra a liberdade de imprensa.
Mas os jornalões, no Brasil e nos EUA, omitem deliberadamente um detalhe ao retratar a situação da Venezuela, onde aquela rede de TV tinha, como a Globo até há pouco tempo, 80% da audiência. Em 2002 a RCTV fraudou a realidade (como fizera a Globo no escândalo Proconsult, na edição do debate Collor-Lula de 1989 e em outros momentos). Seu apoio ao golpe seria punido da mesma forma em qualquer país sério.
Milhares de artistas e profissionais choraram, diante das câmeras, a perda do emprego, manipulados pelo espertalhão Marcel Granier (o Roberto Marinho de lá). Esse criminoso se lixou para os artistas ao aliar-se aos golpistas que violaram a Constituição e as leis do país, derrubando o presidente Hugo Chávez, eleito pela maioria esmagadora dos venezuelanos. E ainda mentiu ao noticiar que ele tinha renunciado.
As organizações Globo parecem sugerir que o fato de ser a RCTV, como a rede Globo no Brasil, líder absoluta de audiência na Venezuela, lhe confere autoridade para passar por cima da lei, falsificar notícias e fraudar a realidade. Ela fez tudo isso na ânsia de ganhar para o golpe, em 2002, o apoio do povo, conclamado a ir às ruas. Mas a volta de Chávez, 24 horas depois, é que fez o povo festejar, enquanto a RCTV silenciava.
A arrogância e a impunidade
A RCTV tinha uma concessão. Novelas, mesmo com 100% de audiência, não conferem papel político e nem o direito de desinformar. O povo que via novela repudiou o golpe. Ao votar, reelegeu Chávez com 64% dos votos – como no Brasil rejeitou a campanha do impeachment, bancada pela Globo, e depois foi às urnas contra o candidato dos Marinho e reelegeu Lula com 60% dos votos.
Na raiz do problema pode estar a arrogância da grande mídia. Impune depois de praticar crimes contra a democracia e os interesses do país, julga-se autorizada, pela própria impunidade, a continuar confrontando a Constituição e as leis. Governantes não podem deixar-se intimidar pela arrogância dela, mesmo quando é invocada a acusação de praxe, ‘ameaça à liberdade de imprensa’.
Do contrário os Marcel Granier de toda parte se sentirão convidados a usurpar as funções de governo. O corrupto Berlusconi na Itália ou o apátrida Murdoch nos EUA são exemplos eloquentes. O grupo Edwards, totalmente impune, é hoje o maior do Chile. Granier correria o risco de chegar lá. E teríamos de esperar 30 anos para saber, pelos papéis da CIA, como conspirou com potência estrangeira contra a democracia e o país.
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Jornalista