Uma nota publicada na edição de quarta-feira (27/2) do Estado de S.Paulo, com origem na agência de notícias Reuters,informa que o sistema de buscas Google resiste naJustiça à ação de autoridades espanholas, que exigem a eliminação, do banco de dados da empresa, de informações consideradas impróprias por um usuário da internet.
O caso nasceu da queixa de um cidadão espanhol, que encontrou no Google um anúncio de jornal de anos antes, informando que um imóvel de sua propriedade seria leiloado por falta de pagamento da seguridade social.
A questão está entregue ao Tribunal Europeu de Justiça e pode definir algumas controvérsias importantes que se desenvolvem com o crescimento das mídias digitais. Uma das questões centrais se refere à definição do que venha a ser informação privada – esse é o núcleo da disputa levada à corte europeia.
A imprensa tradicional acompanha esses debates com interesse, por conta de suas reinvindicações com relação ao valor do conteúdo noticioso produzido por jornais e disponível nos bancos de dados do Google. No entanto, qualquer decisão sobre esse tema poderá afetar também a mídia analógica, com risco de produzir altos custos na triagem e eliminação de reportagens, artigos e até fotografias dos seus arquivos.
Imagine-se, por exemplo, o caso da médica Virgínia Helena Soares de Souza, ex-chefe da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Evangélico, de Curitiba: acusada de praticar eutanásia contra internados do Sistema Único de Saúde, para abrir vagas para pacientes privados, ela é apresentada diariamente como uma espécie de monstro moral. Se ela vier a ser inocentada e restar provado, como diz seu advogado, que se trata do “maior erro investigativo, judiciário e midiático” dos últimos tempos, o que irá acontecer com todo o material acumulado nos arquivos dos jornais e das revistas que embarcaram na versão de seus acusadores?
Por outro lado, como fica a questão do registro textual ou fotográfico de eventos sociais, políticos e culturais importantes cujo contexto vier a ser alterado com o tempo?
Estranha civilização
Ainda nesta semana, a imprensa lida com o caso de um padre católico do Rio de Janeiro que foi acusado de abusar de uma menina de sete anos e de manter relações sexuais com sua irmã de 19 anos de idade. No mesmo espaço da denúncia, os jornais estão sendo compelidos a informar que o próprio sacerdote havia tomado a iniciativa de denunciar o pai da menina, que o estaria chantageando.
Num ato de rara coragem moral, o religioso, ao negar ter abusado da menina, confessou ter mantido um romance com a jovem, que, por orientação do pai, filmou um encontro dos dois para, supostamente, lhe extorquir dinheiro.
Com a opinião pública exacerbada por conta dos escândalos sexuais da igreja católica, de tal gravidade que teriam sido decisivos para a renúncia do papa Bento 16, o padre carioca certamente estaria sendo condenado pela mídia como estuprador, se não tivesse se antecipado em confessar o pecado da luxúria.
Como esse, são incalculáveis os casos em que, com base em uma parte das informações, a imprensa tira conclusões apressadas, produzindo conteúdos potencialmente difamatórios que, arquivados nas nuvens de informações computacionais, ficam disponíveis para sempre.
A disputa entre o Google e as autoridades espanholas em torno do direito de preservar as informações armazenadas nos bancos de dados avança sobre a questão do limite entre o privado e o público, um tema que vem sendo debatido por filósofos e comunicadores há séculos.
Desde sua origem, a imprensa tem cumprido papel central na formação do conceito de interesse público. Nesse processo, a individualidade funciona como reserva inesgotável de elementos de informação, numa evolução que pode ser comparada à exploração das reservas naturais do planeta.
Com o triunfo da cultura de massa, no século 20, o processo de formação da individualidade sofreu uma ruptura, e o advento das mídias digitais vem acelerando essa diluição dos limites entre o campo pessoal e o espaço público. Num futuro próximo, quando pesquisadores criteriosos vierem a navegar nas nuvens de informação, será como na música de Chico Buarque: “E os sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, (…) vestígios de estranha civilização”.