Existe uma discussão interminável no meio jornalístico e acadêmico sobre a diferença entre assessoria de imprensa e jornalismo propriamente dito. Cabe a pergunta: a quem interessa essa litigiosa demarcação de território? A resposta é uma só: aos zelosos profissionais de imprensa que, interessados em capitalizar ao máximo o ‘verniz ético’ do jornalismo, objetivam dissociá-lo da tarefa inglória dos assessores de imprensa, profissionais imbricados com a política (interesses?) da empresa na qual trabalham.
Assessoria de imprensa seria, por fim, uma atividade legítima, porém nada parecida com o verdadeiro – e nobre – fazer jornalístico. Porém, se não pode ser designado como jornalista, quem poderia exercer o papel de assessor de imprensa? ‘Não sabe nem fazer release…’; ‘precisa conhecer a técnica da redação jornalística e os macetes do relacionamento com a imprensa’.
Não se ouve nos círculos jornalísticos nenhuma menção ao relações-públicas. Para resolver o impasse, sugere-se criar a ‘profissão’ de assessor de imprensa. Se esta idéia vingar, terá início mais um interminável processo burocrático para formalizar uma ‘profissão’ na qual, reconhecidamente, tanto jornalistas quanto relações-públicas (e também outros profissionais) labutam há anos.
No fundo, a distinção jornalismo/assessoria revela uma certa soberba, segundo o princípio da virtude da ‘mídia cão-de-guarda’. Sobre este principio ergue-se a bandeira ética de jornais como a Folha de S.Paulo e de seu nobre Conselho Editorial que, a todo tempo, professam valores como espírito democrático, respeito ao leitor e independência política. Tudo muito bonito e digno de apreço, mas bem diferente da realidade.
A Folha, por exemplo, adotou a tergiversação deslavada no episódio das indenizações milionárias concedidas aos perseguidos do regime militar. Faça o que eu digo, não o que eu faço. Mas, que princípio de eqüidade teve o jornal no caso Carlos Heitor Cony? Para bater nos outros, no governo, na Globo, a Folha nunca transige. Para as contradições que envolvem seus pares, contudo, adota mesuras ou pura omissão.
Sem voz dissonante
Aqui se verifica a suposta lógica das assessorias de imprensa imiscuindo-se no propalado jornalismo de utilidade pública da Folha. Quem entende? Os áulicos comentaristas do jornal formam a linha de frente do combate a ‘tudo isso que está aí’. Sobre o caso Cony, contudo, não se ouviu um único impropério de Clóvis Rossi e colegas. Um dos princípios do jornal não é apurar o contraditório? Por que, então, como disse o jornalista Luciano Costa neste Observatório, ‘não se procurou esclarecer como nasceram as distorções da lei que deram a Cony o direito a um valor muitas vezes superior ao concedido, por exemplo, ao ex-militar Apolônio de Carvalho, cujas perdas decorrentes de toda uma vida dedicada à luta contra as ditaduras foram com certeza muito mais relevantes?’
Até mesmo o ponderado Marcelo Beraba, que reconheceu o comportamento titubeante de seu jornal, proferiu declarações desastradas sobre o caso. Uma delas é intrigante: ‘Dois erros graves estão sendo perpetrados [na questão das indenizações milionárias para perseguidos políticos]: um deles é a personificação da discussão na figura de Carlos Heitor Cony’. Engraçado. Quando apura um determinado fato, a Folha geralmente elenca os envolvidos e estabelece ligações com outros personagens (geralmente mais destacados), mesmo que por puro exercício especulatório. Ou seja, o jornal conta o milagre, o nome do santo e coloca supostos coadjuvantes na fogueira em procedimento nem sempre elogiável.
Quando um de seus proeminentes editorialistas encabeça a lista dos bem-aventurados herdeiros da ‘Viúva’, o jornalão propõe a contestação do fato e a ‘preservação’ do envolvido. Por que essa distinção? Como é possível tratar do assunto e não questionar a cessão de uma quantia tão vultosa a um escritor bem-sucedido, cujo nome decerto não figura na lista dos grandes contestadores da ditadura?
Essa história renderia ainda muito pano para a manga. Na realidade, o episódio nos remete às discussões da ‘liberdade da imprensa’, tema notadamente polêmico. O comportamento da Folha indica apenas a ponta de um profundo e pouco devassado iceberg. Existem alguns fatores que determinam o modus operandi da imprensa, entre eles o componente econômico (as empresas de comunicação privadas dependem do lucro para sobreviver) e a matriz ético-ideológica dos conglomerados. Quem entende, por exemplo, a defesa incondicional da Veja, e de resto de todo o Grupo Abril, da chamada economia de mercado? Alguém aí já ouviu alguma voz dissonante do semanário em relação ao livre comércio? Por que todos articulistas da Veja rezam pelo mesmo credo? O que seria? Defesa de interesses corporativos ou fé no pensamento único?
Chamem o assessor de imprensa.
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Relações-públicas, Salvador, BA