Seja no ‘gueto’ ou em áreas nobres, geralmente um vizinho não se intromete nas questões familiares e particulares de outro sem ser chamado. Quando um pai briga com o filho, por exemplo, ninguém vai ao meio da rua gritar se ele está certo ou errado.
Na América Latina, essa espécie de ‘código’ foi quebrada na última quarta-feira, 30, quando a proposta de moção pedindo a renovação da concessão pública à emissora venezuelana RCTV, do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), foi aprovada na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado. Segundo Azeredo, a não renovação da concessão pública do canal foi ‘uma atitude contra a democracia’.
Belíssimo, está aí um exemplo de ‘super-herói da democracia’! Palmas para Azeredo e os que votaram pela moção! Porém, minha curiosidade é despertada: onde nossos heróis estavam em 2002, quando a RCTV apoiou um golpe de Estado contra Chávez, que foi democraticamente eleito? A emissora respeitou a democracia e a autonomia do povo venezuelano ao ajudar a tentar derrubar o presidente eleito?
Sábia opinião
Nossos parlamentares são muito machos, protestam contra o ‘ditador’ que não prorrogou a concessão pública (erroneamente, a grande mídia vem usando a palavra fechamento) da ‘santa’ RCTV. Mas, já que é para se intrometer em problemas alheios, é de se concluir que, para esses senadores, é mais importante um canal de TV privado do que milhares de vidas. Não vi nenhum ‘super-tucano’ fazer belos discursos por democracia com críticas ao genocida da América de cima que ordenou a invasão ao Iraque, onde já morreram entre 655 mil e um milhão de iraquianos, segundo pesquisadores norte-americanos, e mais de três mil soldados estadunidenses desde o início, em 2003.
A resposta de Chávez aos nossos parlamentares foi merecida e verdadeira: ‘Minhas condolências a esse povo [brasileiro], que não merece isso. Um Congresso que repete como papagaio o que dizem em Washington. Deveriam se ocupar dos problemas do Brasil.’
Tivessem nossos senadores ouvido a lúcida opinião dada pelo presidente Lula na terça-feira, 29, teriam se poupado de tamanho constrangimento.’O que o Brasil tem a ver com essa concessão? É um problema da legislação venezuelana. Da mesma forma que eu não quero que eles [os venezuelanos] dêem palpite nas coisas que eu fizer aqui.’ Sábio.
Em compensação quem sairia ‘chupando o dedo’ seria nossa grande mídia, ansiosa por qualquer oportunidade de tentar gerar atrito entre Brasil e Venezuela, Bolívia ou qualquer outro país governado pelo pov…, ou melhor, pela esquerda latino-americana.
Liberdade de canalhice
Defendo com unhas e dentes as liberdades de imprensa e de expressão. Mas é preciso separá-las de liberdade para mentir, forjar, manipular e tentar um golpe contra um presidente democraticamente eleito.
Em artigo no site da Agência Carta Maior, Marco Aurélio Weissheimer pergunta:
‘A atuação de um grupo midiático num processo golpista para derrubar um presidente eleito por voto popular é motivo para a não renovação de uma concessão pública? Se não é, o que seria aceitável para não renovar uma concessão?’
Talvez os brasileiros não sejam os mais indicados para responder. Vivemos num país em que a emissora de maior audiência é aquela que mentia sobre manifestações das Diretas durante a ditadura, manipulou um debate presidencial, elegeu e derrubou um presidente…
Veja também a revista de maior tiragem no Brasil, a qual desde meu primeiro semestre na faculdade de Jornalismo, vi vários professores usarem para ensinar o que não se deve fazer, como não acusar sem provas, não mentir… Pena que bem tão valioso quanto a liberdade de imprensa seja confundido por muitos com liberdade de canalhice. Com isso, cada vez mais o jornalismo afunda na lama da falta de credibilidade.
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Estudante de Jornalismo, São Paulo, SP