Em janeiro último, escrevi para este Observatório o artigo ‘O jornalismo está órfão‘. Tratava do desaparecimento de Ryszard Kapuscinski (1932-2007), sem dúvida alguma um dos dez maiores repórteres da história do jornalismo.
Agora, passados menos de seis meses, ele é acusado pela edição polonesa do Newsweek de ter sido colaborador do serviço secreto do antigo regime de Varsóvia. Foram tomados por base documentos do Instituto da Memória Nacional, órgão muito ligado ao governo nacional-populista dos gêmeos Kaczynski.
O ‘furo’ de reportagem parece à oposição um novo ato da guerra suja dos dossiês da direita radical, no governo da Polônia, criando um clima macartista de caça às bruxas, contra a elite liberal que, integrada à junta chefiada por Jaruzelski, conseguiu uma transição pacífica da política do país depois da queda do Muro de Berlim.
Segundo o dossiê para desabonar a imagem de Kapuscinski, ele, depois de muitas viagens pelo mundo inteiro como repórter da agência de notícias polonesa Pop, transcreveu relatórios sobre a situação dos países visitados: do México aos estados africanos. Mas esse era um fato normal em todo o bloco soviético – o material era arquivado e desprovido de qualquer importância, sem prejuízos para qualquer dos países visitados. Também nada se encontra sobre dissidentes poloneses. Kapuscinski, segundo o Newsweek, teria escrito sobre um emigrado. Mas também não havia nada sobre alguém que fosse de oposição à ‘pátria.’
Essa colaboração era o preço pago para poder viajar ao exterior. Sem esses relatórios, que não causaram prejuízos a quem quer que seja, ele teria que permanecer em seu país e a história ficaria privada de muitos de seus memoráveis livros (Shah em Shahmì, A primeira guerra do futebol). O caso explode num clima pesado quando o governo antieuropeu dos Kaczynski e seus aliados de ultradireita fazem uso de velhos dossiês, muitas vezes falsos e pré-fabricados, para poder difamar as vozes críticas nessa batalha contra as forças democráticas. As crescentes tensões com a União Européia e com Moscou, e o apelo pela democracia dos veteranos de 1989, os ex-presidentes Kwasniewski e Walesa, tornam o governo dos gêmeos cada vez mais nervoso – e pronto a usar de todos os meios.
Um inimigo natural
Alicja Kapuscinski, uma loira senhora que por cinqüenta anos teve vida comum com Ryszard, está enfrentando um duplo desafio: viver sem seu companheiro de sempre e, deixando de lado sua pessoal discrição, defender a memória do homem que amou, diz ela com os olhos marejados:
‘Ryszard Kapuscinski não era um espião, jamais colaborou com o regime comunista polonês e se seu nome consta nos documentos secretos é porque, como todos os que viajavam, era fichado. Tenho certeza como, em reação a essas acusações, diria hoje a frase: ‘Reagir a essas calúnias está abaixo da minha dignidade’. E conclui : ‘E eu não junto nada a essa frase’.’
A maioria das pessoas que governam o país e querem controlar a opinião pública, representam a Polônia provincial e xenófoba. Para eles, Kapuscinsky é um inimigo natural, porque era o democrata, a mente aberta, a voz do pluralismo e do diálogo.
Sem pejo, usam contra ele o que de mais pérfido possa existir numa vilania: atacar quem não pode mais se defender.
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Jornalista