A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, e o Decreto 4.887/2003 da Presidência da República asseguram que as pessoas remanescentes de quilombos são as responsáveis pela sua auto-definição. Pela legislação em vigor no Brasil, a auto-atribuição dos povos e comunidades tradicionais é parte necessária nos processo de regularização fundiária dos quilombolas.
Com base nesta premissa, uma equipe da TV Bahia, afiliada da Rede Globo no estado, esteve em São Francisco do Paraguaçu, uma das onze comunidades do Recôncavo Baiano reconhecidas como remanescentes de quilombos, cujo processo de titulação das terras está em fase final. Nas últimas segunda e terça (14 e 15), veiculou no Jornal Nacional o resultado de sua visita em duas reportagens, intituladas ‘Suspeitas de fraude em área que vai ser reconhecida como quilombola’ e ‘Incra promete apurar denúncias de fraude no Recôncavo Baiano’.
Nas matérias, a emissora apresenta supostos indícios de uma fraude que estaria levando ao reconhecimento das terras. Conversa com moradores que nunca teriam ouvido falar da existência de um quilombo na região; afirma que não existem resquícios de engenhos de cana-de-açúcar no local, onde os escravos teriam trabalhado; e apresenta um documento de pedido de reconhecimento das terras com assinaturas de pessoas que teriam se auto-definido descendentes. Algumas delas, no entanto, teriam sido colhidas para outra finalidade. Na reportagem, o líder comunitário Anselmo Ferreira, que coordenou o projeto que pediu o reconhecimento, afirma que não sabe quem fez a montagem no documento.
Apesar da declaração de José Vieira Leal, superintendente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) na Bahia, de que há cerca de 100% de indicação de que a área é realmente um território quilombola, a reportagem mantém a denúncia.
Indignada, a comunidade de São Francisco do Paraguaçu, localizada no município de Cachoeira, divulgou uma nota pública contestando as informações veiculadas pela Rede Globo, em que afirma que a emissora produziu uma reportagem ‘fraudulenta e tendenciosa, sem oferecer a comunidade nenhuma oportunidade para se defender’.
‘Fomos testemunhas do teatro que foi armado por ocasião das filmagens, onde boa parte da comunidade envolvida na luta pela regularização do território quilombola nem sequer foi ouvida, visto que a equipe de reportagem se recusou a registrar qualquer versão contrária aos interesses dos fazendeiros’, diz a nota, que também informa que os moradores tentaram conversar com a equipe da TV Bahia, sem sucesso.
Concessionária de serviço público
De acordo com a antropóloga Camila Dutervil, que trabalha com a comunidade, a região do Recôncavo Baiano foi ocupada por escravos que trabalharam nos canaviais que começaram a ser plantados no século XVI e na construção do Convento de Santo Antônio, concluído no final do século XVII, em cujo interior está enterrada uma família de portugueses, senhores das usinas de cana Cotinga e do Engenho da Peninha. A área onde foi construído o convento corresponde a duas sesmarias de terra e foi doada aos padres franciscanos pela família proprietária do engenho. Durante a construção do convento, muitos negros que teriam fugido do trabalho árduo e se refugiado na mata iniciaram o processo de formação do quilombo.
‘O Jornal Nacional afirmou que engenhos de açúcar nunca existiram na região, ignorando o fato de que uma das áreas pleiteadas trata-se de uma das primeiras fazendas de exportação de açúcar para a Europa, onde existiu um engenho muito importante, cujas ruínas podem ser observadas até hoje’, afirma Carla.
Atualmente, cerca de 300 famílias vivem da agricultura de subsistência, da pesca, da coleta de marisco e do extrativismo da piaçava no local. A atividade produtiva é baseada no trabalho familiar, na cooperação entre diferentes grupos domésticos e no uso comum dos recursos naturais. ‘Historicamente, nossa comunidade ocupa este território. Os relatos dos mais idosos remetem nossa presença a muitas gerações. Ali sempre praticamos um modo de vida fruto de uma longa tradição deixada por nossos ancestrais’, afirmam os moradores na nota.
A Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), entidade representativa dos quilombolas de todos os estados, reafirma a existência da comunidade e de pessoas assumidas como remanescentes de quilombos no local.
‘Quando a Globo coloca no ar alguém dizendo que não é descendente de escravo não significa que essa pessoa não é quilombola. O termo não é, necessariamente, utilizado por todos. As pessoas se assumem como comunidade negra, como terras de preto. Mas as nomeclaturas significam a mesma coisa’, explica Givânia Maria da Silva, da Conaq.
‘Não cabe à Globo apurar se as pessoas se chamam de negro, de mulato, de descendente de quilombo. Como uma concessionária de um serviço público, ela precisa respeitar os processos de cada grupo. Por que não entrevistou pessoas reunidas em grupo, onde fosse possível discutir essa questão? A reportagem também faz alusão a assinaturas recolhidas com outro objetivo no documento e entrevista o líder comunitário sobre isso. Ele mesmo diz que não reconhece algumas assinaturas, então cabe à emissora mostrar a veracidade deste documento que está publicizando e como o conseguiu’, completa.
O Centro de Cultura Luiz Freire, que trabalha com comunidades quilombolas na região nordeste, também criticou a reportagem do Jornal Nacional por, em nenhum momento, abrir espaço para as pessoas que se reconhecem quilombolas naquela comunidade afirmarem as razões pelas quais reivindicam o reconhecimento oficial de sua condição étnica.
Desmatamento
No final da reportagem veiculada no dia 14 de maio, o jornalista da Rede Globo acusa os moradores de São Francisco do Paraguaçu de estarem desmatando a floresta na região. ‘Como se pode notar, os descendentes de quilombolas, futuros proprietários da área, estão interessados mesmo é na madeira da mata atlântica’, afirma o repórter, ao mostrar cenas de toras sendo transportadas na estrada.
Os moradores, no entanto, afirmam que a área que a Rede Globo filmou não faz parte do terrritório de São Francisco do Paraguaçu. O desmatamento em questão estaria localizado na beira da estrada, antes do povoado de Santiago do Iguape, distante do início da área pleiteada pela comunidade.
‘Extraímos da floresta a piaçava, o dendê, a castanha, e tantos outros produtos. Extraímos tantos tipos de cipós diferentes que usamos para fazer cofos, cestos e tantos outros artesanatos aprendidos com nossos avós. Nós amamos a floresta e a defendemos’, afirmam os moradores.
De acordo com a atropóloga Carla Dutervil, a comunidade depende diretamente dos recursos naturais para a sua sobrevivência historicamente desenvolveu formas próprias de relações com o ambiente, que viabilizaram uma convivência harmônica com o ecossistema. ‘Os reais impactos ambientais já comprovados no território de São Francisco do Paraguaçu, foram obras de fazendeiros da região, que aterraram mangues, provocaram erosão com a construção de estradas e derrubaram a floresta para criação de gado’, afirma. ‘Com tom disfarçado de ambientalista, o real objetivo da reportagem foi defender a manutenção dos interesses da aristocracia agrária do Recôncavo Baiano. De fato, o que está ameaçada é a liberdade de uma comunidade que viveu secularmente na sombra do patrão, se acostumou a servir e está presa por relações de exploração clientelista’, completa.
Há cerca de um ano a imprensa vem noticiando conflitos entre quilombolas e fazendeiros na região. Em setembro passado, grupos armados atacaram as famílias de São Francisco do Paraguaçu, destruindo suas lavouras. Em novembro, o Incra promoveu uma audiência pública, convocada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República, para buscar soluções para os conflitos entre os quilombolas e os fazendeiros. Como informou a Agência Brasil, com a inserção do programa Brasil Quilombola na localidade, os proprietários de imóveis rurais ampliaram as cercas de suas propriedades, dificultando as atividades das famílias que seriam beneficiadas com o fim do processo de regularização fundiária do território.
‘Entendemos o que está acontecendo como uma ameaça à grande virada no país: o reconhecimento pelo Estado do dano causado historicamente por ele próprio à população negra que ajudou a construir este país. O que o latifúndio quer é que este avanço conquistado seja recuado. Uma postura como esta fere a democracia’, conclui Givânia, da Conaq.
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A resposta da Globo
A pedido da Carta Maior, a equipe do Jornal Nacional enviou a seguinte resposta à redação:
‘A equipe formada por três profissionais experientes da TV Bahia passou três dias na região de São Francisco do Paraguaçu. Ouviu aposentados, pescadores, moradores antigos do vilarejo – e também o coordenador do movimento, que pede que a área seja reconhecida como remanescente de quilombo, Anselmo Ferreira. Em entrevista, Anselmo não soube explicar a origem das assinaturas do abaixo-assinado que foi entregue à Fundação Palmares. A grande maioria da população local não concorda com o projeto. Ficou claro que os moradores desconhecem a atividade artesanal do tempo dos escravos, as danças herdadas da África. Desconhecem também o nome que eles teriam criado para a área: Quilombo Freguesia do Iguape. A equipe mostrou, com imagens, que os últimos fragmentos de Mata Atlântica no Recôncavo Baiano já começaram a ser destruídos, antes mesmo do reconhecimento oficial como área que teria pertencido a escravos refugiados. Um crime ecológico que demonstra interesses comerciais na proposta do movimento’.
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Jornalista