Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Rapper acusado de conivência com seqüestro





A manchete da edição de segunda-feira (3/4) de O Dia traz uma pesada acusação contra o rapper MV Bill, que teria visto três pessoas seqüestradas durante as filmagens do documentário Falcão – Meninos do Tráfico e se calado sobre o crime. Segundo especialistas, isto pode caracterizar crime de omissão de socorro. A informação sobre os seqüestrados consta do livro sobre o documentário, lançado na semana passada [ver no pé desta matéria trechos do livro que tratam de seqüestro]. O rapper refuta a acusação.


O OI reproduz abaixo a matéria do Dia, dos repórteres Alexandre Arruda e Bruno Menezes, postada no site do jornal à 00:24 de 3/4/2006. Em seguida, uma carta de esclarecimento assinada por Celso Athayde e MV Bill, publicada no site da Central Única das Favelas. (L.E.)


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Três pessoas em cativeiro e MV Bill se cala


Causou indignação entre autoridades e estudiosos de segurança pública a revelação de que documentaristas preferiram silenciar


Alexandre Arruda e Bruno Menezes [copyright O Dia, 3/4/2006]


RIO –MV Bill gosta de se apresentar como ‘Mensageiro da Verdade’. Tanto que adotou a sigla MV para seu nome artístico. Mas de pelo menos uma verdade ele preferiu não ser o mensageiro: a de que viu seqüestrados em cativeiro. A descrição das três pessoas ‘amarradas e encapuzadas esperando a morte chegar’ está no livro que conta bastidores do documentário ‘Falcão – Meninos do Tráfico’, produzido por ele e seu parceiro, Celso Athayde. Os telespectadores do especial do ‘Fantástico’, da TV Globo, nunca souberam disso. Os leitores, apenas na semana passada, quando o livro foi lançado. Para a polícia, a mensagem jamais chegou. Bill foi um MO: ‘Mensageiro da Omissão’. A O DIA, Athayde confessa ter deixado de lado aquelas vidas e que é ‘menos feliz por isso’.


A revelação de que nunca alertaram sobre o cativeiro e que três vidas estavam ameaçadas foi feita ontem, na coluna ‘Ai, que Loucura!’, de O DIA. Para o rapper, ‘o grande mérito do documentarista é não interferir na realidade filmada’.


Ele diz que não estava ali ‘para isso’. No entanto, a atitude do cantor e Athayde – que estava ao seu lado no cativeiro – foram duramente criticadas por parlamentares, criminalistas, estudiosos, e agentes de segurança pública, que vêem no ato um caso claro de omissão e descaso com a vida humana.


‘Há limites’, diz Cano


‘Acima do documentário, do trabalho importante que eles estavam fazendo, há a necessidade imperial de salvar essas vidas que, provavelmente, já se acabaram também. Nossa senhora. É uma tristeza’, desabafou o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ). Já o sociólogo Ignácio Cano, membro do Laboratório de Análise da Violência e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), todo trabalho de pesquisa possui parâmetros. ‘Há limites e, se há pessoas que vão ser mortas, para mim esse seria o limite.’


Os documentaristas ainda podem ter que se explicar na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados. Segundo o presidente da comissão, José Militão (PTB-MG), uma reunião, na quarta-feira, decidirá o rumo da história. ‘Se uma reportagem que causa uma indignação enorme em todo o País omite um fato desse que, talvez, seja um dos mais relevantes, é lógico que a gente tem que investigar isso.’


Em defesa de Bill e Athayde está o antropólogo Luiz Eduardo Soares, com quem escreveram o livro Cabeça de Porco. ‘Eu não acredito. Eu não acredito que tenha sido assim. Conhecendo os dois como conheço, não acredito que tenha sido assim.’


Já para os parentes do jornalista Ivandel Godinho, seqüestrado em São Paulo, em outubro de 2003, e nunca resgatado, Bill cometeu um ato contra a vida humana. ‘Aí, dane-se a ética profissional, dane-se o furo de reportagem. Se você pode salvar a pessoa, você tem que salvar’, afirma Ivens Godinho, 55, irmão do jornalista.


Para Ivens, o ser humano banalizou a violência. ‘Acho que se você tem condições de ajudar alguém, esteja a pessoa em qualquer situação, você tem que fazer a tua parte. Ele teve a chance, deixou passar e agora tá tentando tirar a culpa dele’, explicou Ivens, que acredita que MV Bill não teria agido da mesma forma se as vítimas fossem de sua família.


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Trechos do livro


Os trechos sobre seqüestro no livro Falcão – Meninos do tráfico, de MV Bill e Celso Athayde (Editora Objetiva, 2006), páginas 13 a 22. Relato de Celso Athayde:



(…) Chegamos a um condomínio de classe média. Doda deu várias voltas antes de parar o carro. Ninguém tinha dito para onde estávamos indo e também não perguntamos.


Telo foi na frente, depois fomos invadindo o conjunto de apartamentos aparentemente novos. Não vi nenhum porteiro, só umas coroas que estavam saindo e ficaram nos olhando direto. Coisa de velho…


Telo bateu na porta e, depois de alguma insistência, uma moça linda a abriu para nós. Telo tascou uma bicota na boca da moça, nos apresentou e nos mandou entrar. Entramos e paramos todos no hall. Dali, percebemos que o apartamento não tinha móveis, só vozes vindo de algum cômodo interno.


A moça pediu ao Doda que fosse buscar comida para todos nós. Eu disse que não, que já tínhamos almoçado, mas ela insistiu e não tinha mais como recusar… pareceria desfeita, e como não conhecíamos os hábitos do lugar, aceitamos que o Doda fosse às compras. Mas o que me intrigava eram as vozes e as gargalhadas vindas de dentro do apartamento. Intrigava porque a moça estava com uma roupa muito íntima e as vozes eram de vários homens. Será que o Telo tinha nos levado para a tal casa da luz vermelha que ele tanto se gabava de freqüentar?


Bobagem minha, vai ver a moça está em casa e as vozes eram dos seus irmãos barulhentos. Esse era meu lado apaziguador, tentando justificar! Continuamos ali, no hall, em frente à porta de entrada. Eles – Telo e a moça – se entreolhavam. Pareciam querer falar em particular para decidir se deveríamos entrar ou não. Era uma saia justa para todos nós.


Bill, que já estava dentro, caminhou para a sala, Felha foi atrás e eu também. Na sala tinha vários caras bem jovens – oito, pra ser mais preciso –, no canto, várias armas. Percebi o Telo do meu lado e vi que ele não demonstrava arrependimento de ter nos trazido ao apê. Mas, pela expressão dele, vi que ele deveria ter avisado para evitar surpresas desagradáveis. Só que eu é que comecei a ficar puto, pois eu é que deveria decidir se queria ou não ir para aquele ambiente.


Agora foda-se, já tava. O Telo nos chamou num canto e disse que ali era o escritório deles, onde eles faziam uns trabalhos e que a gente não deveria reparar, nem se assustar com nada. Ao mesmo tempo que ele disse isso, ele se arrependeu.


– Ô meu, pra que tô falando isso? Tô falando com o rei do crime, Emevibillll!!! Pode ficar à pampa que é tudo nosso!!!


Ele falava e deixava transparecer que ainda tinha algo a dizer.


Cumprimentamos todos na sala. Um a um. Os caras estavam sentados no chão, em pufes, alguns sem camisa e encostados nas paredes. As armas estavam espalhadas sobre um lençol colorido, ao lado de uma TV imensa que ficava sobre um banquinho de cerejeira. O medo me fazia ter certeza de que a polícia ia chegar naquele momento e, por pensar nisso, o medo aumentava. E quanto mais o medo aumentava, mais e mais medo eu sentia. Comecei a lembrar as velhas fofoqueiras que nos viram entrar, o porteiro que podia estar escondido…


Eu pensava: “Adriano, filho da puta! em que merda você colocou a gente!” Daí um cabeçudinho se levantou e começou a falar que conhecia um montão de quebrada onde podíamos ir juntos e que ele fazia questão de nos levar, e que se nós quiséssemos, poderíamos até filmar o quarto do apartamento onde nós estávamos… O que foi desaprovado na hora por todos. Eu perguntei: – O que tem aí no quarto para mostrar?


O Telo não disse nada, fez sinal com o dedo nos chamando e para o Felha, o câmera, não ir. Fomos até o quarto e nos deparamos com um quadro muito mais trágico do que, de repente, sem aviso, se encontra num apê cheio de armas.


Chegamos ao quarto e o Telo abriu a porta, e vimos, a menos de 2 metros de nós, três pessoas amarradas e encapuzadas esperando a morte chegar! A minha vista escureceu, não só pela maldade dos nossos amigos, mas também por estarmos ali, compartilhando tudo aquilo, esperando nossa sagrada refeição e sendo testemunhas, sem querer ser, de um crime abominável. O meu estômago embrulhou na hora. Era duro ver as pessoas ali no chão, amarradas e se mexendo como se estivessem com câimbra. Perguntei ao Telo se as pessoas estavam com fome, ele colocou o dedo indicador na boca pedindo silêncio e falou para sairmos do quarto. Saímos, voltamos para a sala, e ele explicou que eles eram seqüestradores e que estavam usando aquele apê como triagem…


Mas eu não queria saber porra nenhuma daquilo, e, por outro lado, saber de tudo era a única coisa que me seduzia…


Parecia que eu estava sonhando. O mesmo cabeçudo disse que eles estavam angariando fundos para invadir uma delegacia e resgatar uns parceiros deles que estavam agarrados, e que parte da grana seria para comprar mais armas e contratar uns bandidos para o serviço, e parte para pagar propinas para alguns policiais. (…)


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Carta de esclarecimento


Celso Athayde e MV Bill / copyright Central Única das Favelas


Rio de Janeiro, 03 de março de 2006


Amigos e parceiros da Cufa.


Diante da onda de críticas ou discussões sobre a suposta omissão de Celso Athayde e MV Bill em um caso relatado de seqüestro, os autores do livro ‘Falcão – Meninos do Tráfico’, informam o seguinte: o caso foi resolvido sem a participação da polícia e as vítimas foram libertadas.


O desfecho feliz ocorreu, em parte por nossa pressão e pela intermediação seja da pessoa que atuava como nosso contato naquele estado, seja de companheiros seus e, em parte, por conta de conflitos internos do próprio grupo, que se desentendeu quanto ao ato que praticou e suas conseqüências depois que nos permitiram ver as pessoas seqüestradas.


Portanto, não houve omissão de nossa parte. Muito pelo contrário, preferimos não incluir a descrição desses fatos no livro por duas razões: primeiro, porque esse episódio, com seu desfecho feliz, será contado no próximo livro; segundo, para que a obra não parecesse um auto-elogio heróico e para não expor pessoas que se arriscaram, visando salvar vidas e cujas identidades sempre iremos preservar. Em situações que envolvem a vida e a morte, é preciso tanta responsabilidade quanto nos relatos que as descrevem. Nosso compromisso sempre foi e continuará sendo com a vida e com os valores dos movimentos sociais em que nos engajamos.


Por outro lado, ficamos felizes por saber que o que escrevemos é entendido como verdade por todos. Agora, estamos estendendo essa verdade e antecipando o conteúdo da próxima obra, que vai narrar o processo vivido por algumas das famílias que dividiram conosco as experiências narradas no livro e com as quais estabelecemos uma relação de confiança e solidariedade.


Toda polêmica bem intencionada é bem vinda. Ajuda a esclarecer e oferece uma oportunidade de aprofundamento das discussões. Esperamos que o debate sobre o Falcão leve ao debate sobre os falcões da vida real.


Esperamos que os políticos, a polícia, imprensa e os demais façam seus trabalhos, porque nós vamos seguindo e fazendo o nosso.


Mas é bom ressaltar que esse episódio foi resolvido, porém, o sequestro dos direitos desses jovens que o livro retrata continua em todo o país.


Com Respeito a todos,


Celso Athayde e MV Bill