Muito já foi dito sobre as várias facetas do carnaval da Bahia. Posso chover no molhado com esse artigo, mas vou arriscar assim mesmo… Passada a euforia da folia de momo, começamos, finalmente, a nos sentir no novo ano. Parece mesmo que tudo para até a quarta-feira de cinzas quando, agora sim, o ano começa pra valer. Mais uma vez pude acompanhar a folia de perto. Então, creio, posso fazer algumas críticas ao famigerado modelo estabelecido para a festa que um dia, verdadeiramente, já foi do povo.
Saímos dos Barris, eu e mais 15 capoeiristas do Grupo Porto da Barra, em direção ao circuito da folia. Passamos pela Praça da Piedade, Avenida Sete vimos alguns artistas cruzarem o Largo de Itália e fomos em direção à Barra, pelo corredor da Vitória. Dentre os camaradas presentes, tinha um espanhol que me perguntou, ao passarmos pelo corredor dos afortunados, em meio a centenas de cordeiros e cordeiras: ‘Quem mora nesses prédios?’ Olhei para cima, olhei para baixo, e respondi: ‘Quem mora nesses prédios, salvo a galera da residência da UFBA (que também estava tentando vender suas ‘piriguetes [apelido dado este ano às latinhas de cerveja]’), são os que lucram em cima desses cordeiros e cordeiras que estão nesta fila para garantir um pão, um suco e uma maçã (além dos míseros R$ 30,00/dia).’ Respondi isto meio que na lata, mas passei a me questionar sobre o tema, ao observar os detalhes que passam despercebidos pela grande maioria dos foliões embriagados – literalmente! – pelo festejo.
Inversão de valores
Quando estava na faculdade, lembro-me que certa feita estávamos discutindo temas semelhantes e um dos professores nos disse que isso era uma ‘válvula de escape’ para os pobres e miseráveis. Ou seja, carnaval espremido do outro lado da corda, tomando porrada da polícia e dos valentões de plantão, se submetendo às mais diversas humilhações, subindo e descendo na tampinha da garrafa, em troca de seis dias de suposta alegria é uma válvula de escape para a dor e o infortúnio que segue nos outros 359 dias do ano. Anos depois daquele dia na sala de aula, compreendi o que realmente tinha que aprender… É mais fácil implantar essa opinião pronta na cabeça das pessoas, ao invés de entender e propagar que a verdadeira válvula de escape deve ser o direito respeitado do acesso ao trabalho digno, à educação, à cultura, ao lazer, ao esporte. Parece-nos que os senhores do ‘poder’ aprenderam sobremaneira essa prática e, em dias atuais, utilizam mais que nunca a máscara do carnaval para maximizar seus lucros e atrofiar as mentes.
É verdade, como não enxergamos isso antes! É só colocar um palco, um trio, um arrocha, um pagodão, é só fazer as meninas ‘ralarem tudo’ e os caras ‘meterem até o talo’, que nossos problemas estarão resolvidos… E o pior é que o povo continua ‘comendo esse reggae‘. No ano passado, alguns municípios brasileiros pagaram o 14º salário aos seus professores utilizando a verba do Fundeb, mas outros simplesmente cancelaram suas festas populares e dividiram o bolo que seria gasto com estas, com a educação dos seus munícipes. Já imaginou um carnaval desses acontecer em nossa Camaçari?
Antes que me lancem as pedras, não julgo o ganha-pão artístico da turma da ‘theca’, mas é só isso que eles têm para oferecer? Apenas trago mais um ponto de reflexão. Todos nós temos o direito de extravasar nossos sentimentos e energias, mas por que nunca ou raramente o fazemos em ações que beneficiariam aos que mais precisam? No ano passado, por exemplo, peguei as economias que juntei durante um tempo e ajudei um aluno do Projeto Social lá das Mangabas, que havia recebido uma grande oportunidade de ir para a Europa. Alguns me disseram: ‘Você está louco. Poderia trocar de carro com esse dinheiro, viajar ou comprar uma TV de LED de 47´´, mas prefere colocar na mão de uma pessoa que você pouco conhece.’ Acreditem, ouvi isso mais de uma vez. E ai eu reflito junto com vocês sobre o que mais vale: uma vida transformada, ou uma TV de LED de 47´´? Observem a inversão de valores. Se tivesse trocado de carro, todos me dariam os parabéns.
Já é 2011, cidade, acorda pra ver!
Retornando à festa da alegria, não me venham com aquele outro factoide, como diz Mário Kertész, de que o carnaval gera renda para os pobres, pois se gerasse todos morreriam de fome no decorrer do ano, pois carnaval só dura seis dias.
O carnaval é uma festa onde tudo pode. Pode uma camiseta pintada custar de R$150,00 a R$ 1.300,00; pode uma pessoa pagar esse preço absurdo; pode os camarotes ricos lotear os locais públicos; pode o governo gastar milhões para promover esses mesmos abastados. Aqui tudo pode… Vamos pular na cabeça desses miseráveis que carregam o gelo a troco de alguns trocos. ‘Vou sim, quero sim’. Afinal, não podemos jogar toda a carga em cima dos empresários mercenários do carnaval, pois quem compra os pacotes, está no mesmo pacote.
Gosto, sim, do carnaval. Se vocês ainda não notaram, a crítica não é para a festa, e sim para o formato, onde o dono do bloco, da banda, do camarote, ganha tanto que se não fosse a avareza de ganhar mais, poderia ficar ‘de boa’ durante o resto do ano, enquanto aquela idosa do churrasquinho, ou o preto pobre do isopor que vende as ‘piriguetes’, sabemos, jamais poderão viver mais do que uma semana com o lucro obtido na avenida. Eu não pago esse pacote e acho absurdo quem alimenta esse comércio da exploração.
Gosto da festa e da alegria comum do nosso povo (é preciso distinguir as pessoas do modelo imposto). Gosto de ver a Vevete, quem não gosta? Que mulher pirada! E Saulo? Menino novo, com uma empatia ímpar… Foi o melhor da festa esse ano. Teve a coragem de desatar o nó da corda e seguir com o povão atrás, aliás, ao redor do trio do Eva, como nos velhos tempos. Os Mascarados, como sempre, também fizeram a festa da turma sem preconceito. Tiveram também os blocos populares, os afoxés, os blocos afros e, claro, a minha amada capoeira. Enfim, existem sim, bons espetáculos no carnaval da terra da baianidade nagô, mas não vamos fechar os olhos para os absurdos que acontecem atrás do trio elétrico.
Já é 2011, cidade, acorda pra ver!
Salve.
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Administrador de empresas, formado em capoeira regional pelo Grupo de Capoeira Regional Porto da Barra e responsável e mantenedor do Projeto Social Crianças Cabeludas, no bairro do Parque das Mangabas, Camaçari/BA