No último domingo (15/7), com o bicampeonato da seleção francesa, tivemos o encerramento da 21ª Copa do Mundo FIFA, realizada na Rússia. Apesar de não ter sido tão empolgante quanto a edição anterior (a chamada “Copa das Copas”, realizada no Brasil, em 2014); o mundial deste ano nos trouxe algumas reflexões sobre os acontecimentos extracampo, surpresas dentro das quatro linhas e novidades, como o polêmico árbitro de vídeo (VAR, na sigla em inglês), que, como pôde ser visto durante a partida final, na dúvida, beneficiava a seleção mais poderosa.
Pela primeira vez em sua história quase centenária, a Copa do Mundo não contou com nenhuma das principais seleções – Alemanha, Argentina, Brasil e Itália – entre as quatro primeiras colocadas. A tetracampeã Azzurra sequer foi à Rússia. Alemanha, Argentina e Brasil foram eliminadas, respectivamente, na fase de grupos, oitavas de final e quartas de final.
Enquanto os alemães esbarraram no chamado “salto alto”; a Argentina, apesar de contar com a presença de Diego Maradona em seus jogos, se mostrou um time extremamente nervoso e sem padrão tático. Messi pouco pôde fazer para ajudar a sua fraca equipe. Já para os milionários e mimados jogadores da seleção brasileira, modificar o corte de cabelo, fazer propaganda de celular e fast food, atualizar o perfil nas redes sociais, ensaiar passos de dança no vestiário ou chorar copiosamente diante das câmeras de televisão foram questões mais importantes do que propriamente o desempenho dentro de campo. Isso é secundário: o fundamental é aumentar o saldo bancário.
Sob o aspecto midiático, o principal aspecto negativo foi o fato de a Rede Globo deter a exclusividade de transmissão dos jogos da Copa do Mundo para a TV aberta, o que tornou os apreciadores do futebol reféns de narradores e comentaristas da emissora da família Marinho. Como bem apontou o jornalista Paulo Henrique Amorim, em seu blog “Conversa Afiada”, “O Brasil é o único país ‘democrático’ em que uma única emissora privada de televisão tem o monopólio para exibir o time que representa a nação”.
O ponto positivo pode ser creditado a equipe de comentarista da ESPN Brasil que, mesmo antes do início do mundial, já apontava a seleção belga (com sua promissora geração, fruto de um bem arquitetado projeto a longo prazo que deu atenção especial às categorias de base) como uma das favoritas ao título (colocações que, diga-se passagem, receberam inúmeras críticas). Não se tratou, evidentemente, de “torcer” para equipes europeias ou tampouco agourar seleções de outros continentes, mas apenas exercer o bom jornalismo esportivo, sem chauvinismos, baseado em critérios técnicos e objetivos. Outros povos, além do brasileiro, também sabem praticar um futebol de qualidade.
Considerado o maior evento esportivo do planeta – com um poder de mobilização popular inclusive maior do que a Olimpíada – é praticamente impossível ficar indiferente à Copa do Mundo. O torcedor brasileiro, de maneira geral, tem uma relação maniqueísta de amor e ódio com o escrete canarinho: se ganha, é a melhor seleção do mundo, incomparável; se perde, somos o pior país (não apenas no futebol, mas em todos os aspectos). Conforme apontou Casagrande, ex-jogador e comentarista da Rede Globo, “Num país como o Brasil, onde a desigualdade é enorme e o futebol é um dos poucos escapes da população, esperança e frustração caminham lado a lado, seja na torcida do clube de coração ou da seleção”.
Quem odeia futebol, diz que no Brasil o esporte bretão é um poderoso mecanismo de alienação das massas, algo como um panis et circense moderno. Ledo engano, pois essa suposta despolitização da população está ligada a outros fatores, como o sistema educacional precário e a vergonhosa concentração dos meios de comunicação de massa, e não pode ser creditada a um torneio realizado de quatro em quatro anos. Seríamos, então, “alienados periódicos”?
Todavia, isso não significa afirmar que os governantes não possam aproveitar a relativa distração da população com o mundial de futebol para tentar colocar em prática medidas extremamente impopulares. Nesse sentido, a manchete do jornal O Estado de São Paulo, após a eliminação da seleção brasileira, é emblemática: “O Brasil cai na real: seleção brasileira perde da Bélgica por 2 a 1, deixa a Copa do Mundo e volta a encarar a realidade de um país em crise”. Não por acaso, a desclassificação brasileira também gerou um meme com a foto de um Michel Temer desolado dizendo: “Ai meu Deus! O povo vai voltar a falar de política”.
A seleção brasileira também desperta variadas formas de ufanismo. Nos últimos dias, a programação das principais emissoras e as páginas dos principais jornais foram dedicadas quase exclusivamente à cobertura do mundial de futebol. Nomes como Neymar, Philippe Coutinho e Tite foram alçados ao status de semideuses por alguns órgãos midiáticos. No programa “Jogo Aberto”, da Rede Bandeirantes, o comentarista Paulo Martins, menosprezando os adversários do escrete tupiniquim, afirmou que o Brasil ganharia a Copa com “uma perna amarrada”.
No YouTube, um programa intitulado “Na Zona do Agrião” protagonizou colocações dignas da época dos governos militares, que exaltavam demasiadamente o Brasil e, em contrapartida, ridicularizavam as outras seleções. Segundo os “analistas” deste programa, Cristiano Ronaldo e Messi não são bons jogadores, mas farsas criadas pela imprensa internacional; Neymar é o maior futebolista da atualidade, sem comparações; somente o brasileiro sabe jogar futebol (todas as outras seleções são medíocres); a Bélgica é “um time que teria dificuldades de se sustentar no Campeonato Brasileiro da Série B” e a mídia nacional, sobretudo a Rede Globo, torce contra a seleção brasileira e persegue os seus atletas (provavelmente eles não conhecem o narrador Galvão Bueno).
Apesar do equilíbrio entre os participantes e das surpresas – afinal quem imaginaria semifinais disputadas por Bélgica, Croácia, França e Inglaterra –, algumas coisas parecem não mudar em copas: o México “jogou como nunca, perdeu como sempre”, a seleção japonesa (mesmo com o bom desenho tático) continua sendo muito inocente (a ponto de levar uma virada histórica da Bélgica, nas oitavas de final) a Colômbia continua fraquejando em momentos decisivos e, de acordo com um texto irônico do site “Sensacionalista”, as pessoas que não estão acostumadas a assistir jogos de futebol são as que mais se empolgam durante os jogos da Copa.
A Copa do Mundo não está imune a questões sociais, políticas e econômicas. Os resquícios do colonialismo europeu no continente africano e as grandes ondas migratórias internacionais também estiveram contemplados no mundial.
Por causa de um vídeo polêmico em que exaltava a Ucrânia (nação que recentemente teve alguns problemas diplomáticos com a Rússia), o zagueiro croata Vida foi bastante vaiado pela torcida russa durante o jogo entre a sua seleção e a Inglaterra pelas semifinais. O fato rendeu uma advertência da FIFA ao atleta e os croatas tiveram que vir a público pedir desculpas. No entanto, como esclareceu Adriano Wilkson, em uma reportagem publicada no UOL, a frase dita por Vida, “Slava Ukraini” (“Gloria à Ucrância”, em tradução livre), parece ser uma simples saudação ao país do Leste Europeu, ou uma expressão patriótica; mas, em realidade, trata-se de um grito de inspiração xenófoba e fascista, o equivalente ucraniano ao “Heil Hitler”, da Alemanha nazista, ou ao “Arriba España”, do período franquista.
Já as escolhas de África do Sul, Brasil e Rússia como países-sedes dos três últimos mundiais confirmam a importância dos BRICS no cenário global. Não obstante, a ascensão da Rússia como influente ator geopolítico tem incomodado as principais potências. Nesse sentido, não foi por acaso que esteve em curso uma grande campanha mundial em boicote à Copa de 2018. Uma espécie de “russofobia”.
Em uma comparação absolutamente grotesca e descabida, o secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, Boris Johnson, afirmou que “a Rússia de Putin tentará utilizar a Copa do Mundo de 2018 para reforçar sua imagem da mesma maneira que a Alemanha de Hitler utilizou os Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim”. Não por acaso, os membros da família real britânica (seguidos por mandatários de outros dezenove países) boicotaram o mundial russo, em represália à suposta tentativa do governo de Moscou de assassinar com uma arma química o ex-espião Serguéi Skripal e sua filha Yulia.
Por outro lado, a grande presença de atletas com ascendência africana em seleções como Bélgica, Inglaterra e França trouxe a falsa impressão de que os imigrantes são bem aceitos e estão completamente integrados nas sociedades europeias. Não nos iludamos, as nações do chamado “Velho Continente” continuam sendo norteadas por lógicas racistas. Ao relembrar o seu início de carreira, o atacante belga Lukaku relatou: “Quando as coisas corriam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga. Quando as coisas não corriam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga descendente de congoleses”. Será que se contassem apenas com jogadores “belgas”, “franceses” e “ingleses” em seus elencos, as seleções da Bélgica, da França e da Inglaterra teriam alcançado colocações tão expressivas neste mundial?
Falando em globalização no futebol, a crescente transferência de jogadores africanos e sul-americanos para as principais ligas do planeta e a tentativa de imitar os padrões técnicos e táticos europeus podem ser as causas que ajudam a explicar os insucessos de seleções da África (eliminadas ainda na fase de grupos) e da América do Sul (que chegaram, no máximo, às quartas de final).
Nas redes sociais houve uma grande quantidade de “textões”, fake news, imagens manipuladas e memes sobre a Copa. Questões como torcer ou não torcer pela seleção brasileira, a suposta armação internacional para que a França vencesse a Copa do Mundo e a possível influência de ideias fascistas sobre alguns jogadores croatas suscitaram debates acalorados. Apesar da ausência da modelo e atriz paraguaia Larissa Riquelme, novas celebridades instantâneas, como Yury Torsky, o “torcedor russo misterioso”, surgiram durante o mundial.
As eliminações das seleções consideradas favoritas (principalmente Alemanha, Argentina e Portugal), os jogadores mais conhecidos (como Cristiano Ronaldo e Messi), a falta de gols do atacante Gabriel Jesus e as simulações e quedas de Neymar foram inspirações para a criatividade dos produtores de memes e GIFs. Aliás, as tentativas de ludibriar a arbitragem fizeram com que a imagem do camisa 10 canarinho ficasse bastante desgastada em boa parte do planeta.
No entanto, não foi só o bom humor que esteve presente no espaço virtual. As faces mais obscuras do ser humano se manifestaram nos comentários racistas contra o volante Fernandinho (bode expiatório da eliminação brasileira), nos vídeos em que torcedores brasileiros, aproveitando as diferenças linguísticas, faziam mulheres russas repetirem frases machistas e em manifestações islamofóbicas contra o meia sueco de ascendência turca Jimmy Durmaz. Entre as fake news mais difundidas estão uma declaração de Neymar afirmando que gasta milhares de reais mensais com o seu cachorro, a imagem de Messi sendo marcado implacavelmente por quatro defensores nigerianos e uma colocação do técnico uruguaio Óscar Washington Tabárez solicitando ao governo de seu país que invista em educação.
Com o fim da Copa do Mundo, voltamos à nossa realidade cotidiana. Sendo assim, é bastante provável que o centro das atenções da agenda pública nacional agora se volte para as eleições presidenciais de outubro. Ao que tudo indica, esta “disputa”, devido ao contexto político-econômico extremamente atribulado pelo qual atravessamos, deverá ser tão imprevisível e aberta como foi a Copa do Mundo da Rússia. E, nesse campo, a imprensa hegemônica de nosso país, via de regra, está do lado oposto aos interesses da grande maioria do povo brasileiro.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia e autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.