Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Reflexões sobre um gênio contemporâneo

O aniversário de Chico Buarque de Hollanda fez toda a mídia dedicar preciosos espaços ao artista – ou gênio – brasileiro contemporâneo. Que bom!

No entanto, penso que principalmente a mídia impressa não poderia perder a oportunidade de aprofundar estudos e discussões sobre a obra do Chico. Não basta falar da biografia do autor ou citar a sua rica discografia. É importante também abordar mais o Chico no viés do conteúdo das suas mensagens. Que contribuições para a educação? Onde entram a História, a Literatura e a Psicologia nos textos do compositor? Por que os livros de Língua Portuguesa citam cada vez mais os escritos do autor? O que os exames vestibulares têm enfocado a respeito dele? Como profissionais da educação convivem com o Chico na sala de aula? O que dizem as teses de pós-graduação, nas diversas áreas, que progressivamente abrem espaço para ele?

A leitura das letras do Chico deixa rastros que tantos, como eu, procuram desvendar, sempre em busca das raízes e essencialidade da obra. E não esqueçamos um dado importantíssimo: Chico é nosso contemporâneo e está vivo! Gilberto Gil, como ministro da Cultura, disse que ‘Chico Buarque tem sido levado a fazer-se fonte, a tornar-se ponte, a seguir caminhos por onde trilham gerações como a minha’.

Percorrendo a obra do Chico, encontro tanto elementos históricos como influências ou ecos dos livros provavelmente escolhidos por ele para leitura, mas também noto traços psicológicos, religiosos, sociais, lingüísticos etc. São facetas que mexem com o imaginário das pessoas e se apresentam nas suas formas artísticas, sugerindo que estas, lado a lado com os conteúdos, aumentem minha capacidade de ver e sentir os ricos significados.

Chico e a História

Quando penso do ponto de vista histórico, acho letras referentes a outros tempos – olhos do presente no passado, com reelaboração de referências históricas – , como em Dr.Getúlio (Getúlio Vargas) – ‘o chefe mais amado da nação’-, onde se manda olhar ‘a evolução da história’, pedindo que ‘abram alas para Gegê desfilar / na memória popular’.

Há, também, o repertório da peça Calabar, no clima das invasões holandesas no século 17. Nela, o traidor – passa para o lado holandês – é executado, deixando a viúva guerreira ‘que sabe dos caminhos dessa minha terra’ e ‘dos segredos / que ninguém ensina / onde guardo o meu prazer’, misturando geografia e corpo, campanhas e entranhas.

A Inquisição no Brasil certamente serviu de referência para Chico elaborar Não existe pecado ao sul do Equador.

As invasões francesas ao Rio de Janeiro estão no espírito de Bancarrota Blues.

Encontra-se, ainda, a música do Chico para Romanceiro da Inconfidência, o recontar poético de Cecília Meireles sobre a Inconfidência Mineira (século 18), que nos remete ao mártir Tiradentes.

Porém, ao lado de outras criações sob a vertente histórica, o que mais deixou marcas do Chico nos seus admiradores foi a coleção de letras ligadas ao longo período da ditadura militar no Brasil. Ele soube captar o clima histórico que viveu intensamente. Seus versos caracterizam a atmosfera que marcou uma geração inteira. Foram criadas canções que nasceram do movimento de negação do estado de coisas predominante.

Talvez os maiores destaques, nessa linha, sejam Apesar de você – quando ‘hoje você é quem manda’ mas ‘amanhã será outro dia’ – e Vai passar – a ‘página infeliz da nossa história’.

Todavia há tantos outros que considero inesquecíveis como Quando o carnaval chegar – ‘eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando / e não posso falar / tou me guardando pra quando o carnaval chegar’ –; Cálice – ‘como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano’ –; Acorda amor – ‘se eu demorar uns meses / convém, às vezes, você sofrer / mas depois de um ano eu não vindo / ponha a roupa de domingo / e pode me esquecer’ –; O que será (À flor da terra) – ‘que anda nas cabeças, anda nas bocas’ –; Angélica – ‘só queria agasalhar meu anjo / e deixar seu corpo descansar’ –; Roda viva – ‘a gente quer ter voz ativa / no nosso destino mandar / mas eis que chega roda viva / e carrega o destino pra lá’ -; Sem fantasia – ‘eu quero te mostrar / as marcas que ganhei / nas lutas contra o rei / nas discussões com Deus’ – etc.

Hoje, basta que se percorra essas canções ancoradas na história recente do país para trazer à tona episódios, cacos, fragmentos e experiências.

É difícil não lembrar de canções desse viés histórico e político, mas ligadas a outros países, como Fado tropical – ‘ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / ainda vai tornar-se um imenso Portugal’ ; Tanto mar – ‘já murcharam tua festa, pá / mas certamente / esqueceram uma semente / nalgum canto do jardim’ , alusiva à Revolução dos Cravos; e a tradução da Canción por la unidad latinoamericana do cubano Pablo Milanês – ‘já foi lançada uma estrela / pra quem souber enxergar / pra quem quiser alcançar ‘. Chico manifestou assim seu elevado grau de sentimento em relação a momentos históricos, inclusive emprestando solidariedade a outros povos.

A literatura nas letras de Chico

Se a vereda para ler e entender Chico é analisar a presença da Literatura, isto é, pesquisar obras literárias – do passado ou do presente – que podem estar dentro das letras do Chico por influência da sua leitura, aí eu vejo aberto outro leque imenso para estudos. Algumas relações já foram pesquisadas até mesmo academicamente em programas de pós-graduação universitária, pois as criações do Chico servem de campo fértil para a análise literária e as relações entre as letras do compositor e clássicos da Literatura brasileira e estrangeira.

É oportuno lembrar que Chico é filho de Sérgio Buarque de Holanda, historiador brasileiro, professor, escritor, membro da Academia de Letras, autor de Raízes do Brasil – uma revisão de nossas etnias e sua repercussão na constituição das classes sociais. Sérgio conviveu com Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Antonio Candido, Afonso Arinos, Oscar Niemeyer, Antônio Houaiss e Antonio Callado, apenas para citar algumas figuras ilustres que compunham o tom intelectual do mundo da infância e mocidade do Chico.

Em Perfis do Rio, a escritora Regina Zappa destaca que as paredes da casa de Chico eram cobertas de livros: ‘Em casa fora criado num clima propício ao desenvolvimento de uma forma crítica de ver o mundo. É evidente que o convívio doméstico contribuiu decisivamente para a sua formação humanista. Ninguém é filho do autor de Raízes do Brasil impunemente’. Assim, é enorme o campo de possibilidades de associação da obra de Chico Buarque com outras obras literárias. Pinço alguns exemplos.

Pedaço de mim – ‘oh, pedaço de mim / oh, metade afastada de mim / leva o teu olhar’ , de 1977 e 1978, nos leva de volta a O Banquete, diálogo que é a obra-prima de Platão (337 a.C).

Gota d’água – quando o coração é ‘um pote até aqui de mágoa / e qualquer desatenção, faça não / pode ser a gota d’água’ – de 1975 vem de Medéia de Eurípides – último dos três dramaturgos clássicos da Grécia, depois de Ésquilo e Sófocles – de 431 a.C.

Mulheres de Atenas – elas ‘sofrem por seus maridos’ e ‘quando eles embarcam, soldados / elas tecem longos bordados / mil quarentenas’ de 1976 pode vir também do clássico Lisístrata de Aristófanes – grande representante da comédia grega antiga – de 411 a.C.

De 1982, Beatriz ‘sim, me leva para sempre, Beatriz / me ensina a não andar com os pés no chão’ e ainda ‘será que é comédia / será que é divina / a vida da atriz’ – e Sobre todas as coisas – ‘não, Nosso Senhor / não há de ter lançado em movimento Terra e Céu / estrelas percorrendo o firmamento em Carrossel / pra circular em torno ao Criador’ – trazem as marcas inegáveis da alegoria A Divina Comédia (1320) de Dante Alighieri. Aí também entra a base de Jorge de Lima em O Grande Circo Místico.

A escritora Adélia Bezerra de Meneses, doutora pela USP, identifica paralelos entre Cálice – no que a letra tem de fantasmagórica – de 1973 e a fábula Silêncio de Edgar Allan Poe – poeta, crítico e contista americano famoso por suas histórias de mistério e medo, que viveu no século 19. A estudiosa faz também relações que unem Vida – ‘luz, quero luz’ – de 1980 e Fausto de Goethe (1749-1832). E ainda encontra ecos dos franceses Charles Baudelaire (1821-1867) e Gustave Flaubert (1821-1880) em As vitrines de 1981 e Pelas tabelas de 1984, respectivamente.

Ópera do malandro foi inspirada nas óperas do alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e do inglês John Gay (1685-1732).

Pra citar alguns exemplos brasileiros de associações entre as criações de Chico e a nossa Literatura, lembro que Gonçalves Dias está em Sabiá – ‘sei que ainda vou voltar / para o meu lugar / foi lá e é ainda lá / que eu hei de ouvir cantar / uma sabiá’ ; Fernando Pessoa podi ser o autor de Cecília – ‘Te olho / te guardo / te sigo / te vejo dormir ; Nelson Rodrigues marca Mil Perdões – ‘te perdôo / por te trair’ ; Carlos Drummond de Andrade contribui para Até o fim – ‘quando nasci veio um anjo safado / o chato dum querubim / e decretou que eu tava predestinado / a ser errado assim’ – e Flor da idade – ‘Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo’ ; José de Alencar influi em Iracema voou – ‘voou para a América’ e ‘tem saudades do Ceará’ ; Guimarães Rosa inspira Assentamento – ‘quando eu morrer / cansado de guerra / morro de bem / com a minha terra’ ; Chico fez O Rei de Ramos para a peça de Dias Gomes e musicou Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto, que fala da terra, da morte, da miséria.

Mais Chico

Vai longe o conjunto de associações com a História e a Literatura, vínculos que são frutos da percepção aguçada de Chico Buarque. Constato que é incrível a versatilidade temática do artista. Além do que abordei aqui, em linhas gerais, é preciso também extrapolar as letras das músicas e comentar profundamente o Chico do teatro, o Chico do cinema, o Chico de Estorvo, o Chico de Benjamim, o Chico de Budapeste… Quantos espelhos!

É tempo de multiplicar caminhos e apreender mais sobre os ricos conteúdos dos textos deste gênio contemporâneo. E a mídia tem a ver com isso.

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Engenheira civil e analista de sistemas de informação