A Globo mostrou em seu programa semanal Globo Repórter, na sexta-feira 9 de setembro, que está a favor da desregulamentação da economia e do trabalho informal – pechas que assolam a humanidade e os direitos humanos –, ao exibir reportagem pífia sobre os ‘heróis anônimos’ que sobrevivem nas ruas das grandes cidades, fazendo biscates para sustentar suas famílias e não morrer de fome.
O cuidado da edição impecável pode ter dado parecer, à grande maioria da audiência, no entanto, que a emissora conseguiu com êxito prestar um bom serviço à sociedade, o que não é verdade. O argumento monocórdio da matéria não foi outro que não o de sugerir à população que vá à luta, que se meta a trabalhar, seguindo os bons exemplos apresentados na matéria, pois esse tipo de vida que estamos levando é um determinismo histórico e que não vale a pena saber as causas do atual modelo político e econômico – capitalista neoliberal – e as suas conseqüências.
A matéria do Globo Repórter é um insulto à inteligência e um claro posicionamento da emissora contra o estado de direito econômico, social e cultural do povo brasileiro. Se não é este o ideário da Vênus Platinada, qual seria então o interesse dos homens que comandam o jornalismo dessa emissora, ao deixarem de incluir na pauta da reportagem uma única menção ao flagelo da discriminação trabalhista de várias ordens e da desregulamentação das leis do trabalho, causas também da esquálida distribuição de renda no país – razões de os tais heróis da matéria terem surgido? Falta de visão do que é fazer comunicação social? Pode ser também, embora não seja o principal.
Interpretações subjetivas
A reportagem, se analisada com critério, pode ser vista como maquiavélica, ao incitar a emoção dos personagens e as lágrimas da audiência, com a finalidade de fazer crer que a vitória sobre todo o sofrimento econômico-financeiro é apenas uma questão de esforço próprio e da família – sem levar em conta o compromisso dos Três Poderes, das elites e das empresas para com a população e seus direitos humanos, cada dia mais desrespeitados, em razão da lucratividade sem a contrapartida expressa nos direitos econômicos, sociais e culturais.
O desserviço da Globo é o de não só deixar de conscientizar a população sobre os seus direitos sociais, como é também o de ajudar a manter a cultura imposta pelo sistema capitalista neoliberal, do qual é arauto. Dessa forma, a sociedade deixa de encontrar um parceiro nas reportagens da imprensa, em sua luta por reformas sociais e pela distribuição de renda mais humana, para se condoer com a trajetória sôfrega de falsos heróis. Está mais que óbvio que o trabalhador de carteira assinada, que ganha um salário mínimo, também pode ser visto como um herói. Ou anti-herói.
O pior é que a visão de mundo criada na reportagem e exibida pela emissora acaba por formar também quem não deveria ser influenciado. É o caso dos juízes do trabalho, que relutam em fazer interpretações tomando como base os direitos sociais, em razão da letra fria expressa nas formas da lei – que podem e, costumeiramente, são alvo de interpretações muitas vezes subjetivas.
Nos tribunais
As conseqüências do descumprimento dos direitos humanos no Brasil, é importante dizer, agravam o problema do trabalho infantil, do trabalho forçado e a discriminação no trabalho em razão de gênero e cor, para falar o mínimo. Quanto ao trabalho informal, pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) dão conta de que ele avança rapidamente no Brasil e, nos maiores centros, ultrapassa os 50%, deixando um rastro de ilegalidades e descompromisso com o aspecto social. Especialistas dizem que ele tem origem, entre outras coisas, na desregulamentação do trabalho formal, principalmente nas grandes empresas, em razão da concorrência.
Em vista deste novo cenário mundial, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) vem se esforçando em reformar as leis do trabalho internacionais, criando em suas convenções novas formas de ver o homem e os direitos humanos – que as grandes empresas desrespeitam sistematicamente, principalmente na era da globalização.
A mídia, também de modo geral, tem-se mostrado muito mais afeita à visão de grupos financeiros do que aos direitos sociais. No caso do Globo Repórter, a reportagem em questão reforça essa tendência e faz ganhar o modelo capitalista neoliberal, do qual fazem parte as grandes empresas anunciantes, que têm na Rede Globo o seu principal veículo para atingir as grandes massas da população, além, claro, da própria emissora, que fomenta o negócio das suas ‘parceiras’ e ganha (muito bem) para isso. E onde ficam os direitos humanos? Nos bancos dos tribunais, nas mãos dos juízes, na interpretação das leis, menos na tela da Globo. E cada vez menos no ambiente social, que os veículos de comunicação deviam, por natureza, defender e conservar.
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Jornalista em Salvador e professor da Faculdade Integrada da Bahia (FIB)