No penúltimo debate entre os presidenciáveis, na Record, eis que surge um nome tão difamado e caluniado pelos grandes meios de comunicação: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Embora desde a fundação, em Cascavel (PR), no ano de 1984, o movimento tenha sido observado de esguelha pela burguesia nacional, seu crescimento e fortalecimento são incontestáveis. Tanto que o candidato tucano, representante das classes possuidoras, não hesitou ao mostrar a outra face do liberalismo, a saber, o conservadorismo: ‘Uma coisa é reforma agrária; outra é usar a reforma agrária como pretexto para violência e para quebrar a ordem jurídica‘, disse um Serra indignado.
Cabe identificar quem, de fato, pratica a violência e, consequentemente, quebra a ordem jurídica. Para tanto, talvez seja necessário identificar o real significado do substantivo ‘violência’. Segundo o dicionário Houaiss, dentre outras coisas, esta palavra denota ‘exercício injusto ou discricionário; cerceamento da justiça e do direito; coação, opressão, tirania’. Ora, ainda que a atual Constituição tenha sido aprovada sob a hipócrita ‘transição lenta, gradual e segura’, imposta pelos militares e acobertada pela elite branca, como bem atentara Florestan Fernandes, a reforma agrária, graças a inúmeras pressões da esquerda, dos sindicatos e dos movimentos sociais, acabou por figurar na Carta Magna de 1988. Pelo menos é o que diz o Art. 184: ‘Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.’
O entendimento acerca desta última expressão certamente poderia gerar interpretações várias, se não fosse o Art. 186. Este, apesar de algumas ambivalências, deixa claro que para cumprir a ‘função social’ é fundamental que a propriedade rural atenda aos seguintes requisitos: ‘I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.’
Acelerar o motor da História
Ao que tudo indica, a Cutrale, empresa à qual José Serra se referiu, violou a ordem jurídica. Afinal, ainda que a cobertura da mídia à época da suposta destruição dos laranjais tenha omitido alguns dados de suma importância, o deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR) lembrou, em boletim, que a empresa é alvo de cinco processos no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por liderar um cartel formado por quatro empresas que dominam o setor e por posse ilegal de armas de fogo. Ademais, a empresa já foi autuada por provocar diversos impactos ambientais.
Outra informação negligenciada pelos auto-nomeados guardiões da liberdade de expressão e seu candidato: a fazenda Capim, no centro-oeste de São Paulo, onde se encontravam alguns assentamentos e acampamentos do MST, está localizada em uma região de terras griladas, ou seja, foram tomadas irregularmente, o que, mais uma vez, representa quebra da ordem jurídica. Segundo Joana Tavares (Jornal do MST nº 298, 11/2009), ‘apena na área onde está a fazenda usada pela Cutrale, há 30 mil hectares de posse legal da União. Mas a União não cumpre sua função de retornar as terras para a reforma agrária’.
Não é de surpreender a arrogância e a violência com a qual José Serra trata o MST – movimento legítimo, cujas reivindicações estão legalmente fundamentadas. Na verdade, o que é estarrecedor, e aqui vale ressaltar novamente as críticas de Florestan Fernandes, é a incapacidade da burguesia nacional em executar suas tarefas históricas, vinculadas às reformas capitalistas. Emerge aí uma velha contradição da sociedade brasileira entre a estrutura escravocrata, baseada no latifúndio, e o sistema de capital.
Nesse caso, a fala da candidata petista Dilma Rousseff, no debate, é significativa, pois demonstra qual é o rumo que o Brasil seguirá, caso ela ganhe a eleição: ‘Nós não tratamos nenhum movimento social nem com cassetete, nem com repressão. E jamais aceitaremos a repetição de eventos como aquele dramático que foi a morte de vários agricultores em Eldorado dos Carajás.’ Indiscutivelmente, tanto Dilma quanto o presidente Lula estão sendo coerentes ao defenderem reformas que, embora não sejam intrinsecamente socialistas, representam a aceleração do motor da História, isto é, a luta de classes.
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Jornalista, Niterói, RJ