Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Remédios diferentes para os mesmos males

A Revista de História da Biblioteca Nacional (número 56, maio de 2010) fez um percuciente dossiê sobre feitiçaria e deu chamada de capa às curas mágicas e aos padres mandingueiros. Um dos artigos mais interessantes é ‘Remédios de comadres’, de Flávio Coelho Edler, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz.

Desde os tempos coloniais até o século 19 prevaleceram as relações da medicina com a feitiçaria, com as práticas mágicas, e não com a ciência. E a República não acabou com isso, já que não resolveu os problemas que requeriam dos positivistas que a proclamaram uma séria intervenção do Estado, naturalmente combinada com outras ações, igualmente fortes, na área da educação.

Médicos e boticários praticavam verdadeiras insanidades nos receituários. Talvez o berço das palavras ajude a compreender melhor o que se passou. Boticário era o farmacêutico da época, nome vindo de appotheca, farmácia em latim, que virou bodega, estabelecimento que vendia tudo. Já médico, que tem também o significado de intermediário, alguém que se põe entre a doença e o doente para ajudar este a vencer aquela, tem o mesmo étimo de meditação, a raiz indo-europeia med, indicando ações de pensar, no caso para descobrir as causas dos males, com o fim de exterminá-los. Às vezes, exterminavam o doente, não a doença.

Uma farmácia em cada esquina

Como era, então, exercida a medicina, tal como concebida nos tempos coloniais? Bem, em primeiro lugar estavam os barbeiros que, com a mesma navalha com que faziam a barba dos clientes, e provavelmente sem esterilização alguma, praticavam as sangrias, com o fim de renovar o sangue, metodologia que vinha desde os tempos medievais, pois os primeiros médicos foram barbeiros e alguns ainda o são hoje, no sentido de desempenhar mal o ofício, metáfora que migrou para o trânsito, qualificando o mau motorista.

Algumas dessas práticas realmente curavam, pois as viroses têm ciclos e, assim como começam, com ou sem tratamento, vão embora, como as gripes. Mas, quando associadas a danças rituais como o calundu e o catimbó, os efeitos tinham uma causa precisa, capaz de ser aferida: todo malemolente, o enfermo era obrigado a sacudir-se com alegria e, claro, como a tristeza é má conselheira, o sincretismo religioso de índios e negros dava poderosos ingredientes à arte da cura. À arte, não à técnica, que esta, sim, é propriamente medicinal, embora todo médico saiba que arte também ajuda a curar. Nos hospitais cubanos impressionou-me que todos os quartos tivessem um quadro na parede para que o doente não fique olhando para o vazio.

Mas algum progresso houve. Conclui o pesquisador:

‘Hoje, é muito mais comum uma pessoa confiar em um bom antibiótico do que recorrer a um feitiço para acabar com a infecção.’

Pode ser, mas curandeiros disfarçados de médicos passaram a receitar remédios que devem ser comprados em farmácias, drogarias ou boticas das quais muitos deles, por vias transversas, são sócios. E, prova de que farmácia é um bom negócio, em cada esquina encontramos uma.

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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras