A não-renovação da concessão do serviço público de radiodifusão do canal RCTV pelo governo da Venezuela, em 28 de maio passado, provocou uma onda de manifestações em defesa da democracia na América do Sul. O governo dos Estados Unidos, a União Européia e os megagrupos privados globais de mídia têm sido unânimes em condenar a decisão. Entidades representativas dos radiodifusores acusam a ameaça à liberdade de imprensa. Até mesmo nossos senadores deixaram de lado preocupações mais prementes para aprovar apelo dirigido ao presidente Hugo Chávez no sentido de rever a sua decisão que, por sua vez, respondeu ofensivamente ao Congresso Nacional.
Independente do mérito e das implicações políticas da não-renovação há um importante aspecto que tem sido pouco lembrado no debate conduzido pela grande mídia. Trata-se de que, na Venezuela e no Brasil, as concessões de serviço público são precárias, outorgadas sob determinadas condições e por prazo previamente acertado. Seu eventual cancelamento ou não-renovação são possibilidades inscritas nos respectivos contratos. O concessionário é exatamente o que o nome diz, isto é, detentor de uma concessão. Não é proprietário.
No Brasil, as condições sob as quais os contratos de concessão dos serviços de radiodifusão são outorgados têm sido objeto de controvérsia há algum tempo.
Dispositivo constitucional
Recentemente, em audiência pública na Subcomissão Especial da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados destinada a analisar mudanças nas normas de apreciação dos atos de outorga e renovação de concessão do serviço de radiodifusão, o procurador da República no Distrito Federal, Rômulo M. Conrado, chamou a atenção para a necessidade da regulamentação e revisão de diversos dispositivos do capítulo da Constituição que trata da Comunicação Social.
Dentre outros, o procurador destacou especificamente o § 4º do Artigo 223, que confere aos contratos firmados entre as emissoras de radiodifusão e o Poder Concedente uma natureza diferenciada única em relação a todos os demais contratos de concessão de serviços públicos. Ele lembrou que, na hipótese de identificação de alguma irregularidade grave na prestação do serviço, o Poder Concedente só recuperará o direito à plena tutela sobre o serviço em caso de decisão judicial. O § 4º do artigo 223 diz o seguinte:
‘O cancelamento da concessão ou permissão antes de vencido o prazo, depende de decisão judicial’.
O procurador sugeriu, então, a necessidade de revogação deste dispositivo constitucional, de modo a equiparar os contratos de outorga de radiodifusão aos outros firmados pelo Poder Público. Neles, o concessionário se obriga a manter a regularidade jurídica e fiscal da entidade por toda a duração do contrato, sob pena de imediata rescisão.
Ações de fiscalização
O procurador poderia ter mencionado também o privilégio desses contratos em relação às condições de sua não-renovação. De fato, o § 2º do mesmo Artigo 223 diz que:
‘A não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal.’
Na prática, a norma significa que a não-renovação de uma concessão de radiodifusão precisa ser aprovada em sessão conjunta do Congresso Nacional pelo voto nominal (aberto) de 238 parlamentares. Qualquer observador que acompanha as atividades nas duas Casas do Legislativo sabe que essa é uma votação praticamente impossível de se obter.
Por outro lado, a CCTCI aprovou na quarta-feira (30/5), relatório com novas regras para a apreciação dos processos de renovação e outorga de concessões de emissoras de rádio e televisão. A proposta veio exatamente da Subcomissão Especial que tratou do tema nos últimos dois meses.
Nas modificações do Ato Normativo nº 1 de 1999, que vigoram a partir de julho, fica eliminada a possibilidade de devolução de processos ao Ministério das Comunicações para solução de eventuais pendências. Se no prazo de 90 dias as pendências detectadas na CCTCI não forem solucionadas pelas concessionárias, o processo será distribuído para relatoria com recomendação pela rejeição.
Fica também prevista a realização de ações de fiscalização com o auxílio do Tribunal de Contas da União sobre os procedimentos adotados pelo Poder Executivo no exame dos processos, e o estabelecimento de dispositivos que vinculem as outorgas para emissoras com fins exclusivamente educativos a instituições de ensino, com reconhecimento formal do Ministério da Educação. Os processos também não poderão mais ficar parados indefinidamente na CCTCI. O presidente da comissão requisitará os que não forem relatados no prazo de cinco sessões para redistribuição.
Critérios e condições
A aprovação do novo Ato Normativo constitui um primeiro passo para atuação mais ativa e conseqüente do Congresso Nacional em relação às concessões e renovações dos serviços de radiodifusão que, desde a Constituição de 1988, vinha sendo meramente formal.
Como se vê, no caso brasileiro, as concessões, as renovações e o cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão à iniciativa privada são historicamente regidas por normas que, ao longo do tempo, transformam os concessionários praticamente em ‘proprietários’. Só agora, por exemplo, um dos poderes concedentes, o Congresso Nacional, define normas mais efetivas para a apreciação das autorizações que vêm do Poder Executivo.
A não-renovação da concessão de um canal de TV na Venezuela poderia, portanto, se transformar em excelente ocasião para que se discutissem quais deveriam ser os critérios e as condições para concessão, renovação e cancelamento do serviço público de radiodifusão no Brasil.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)