O filme Uma Verdade Inconveniente foi lançado em 2006. Nele, um candidato democrata norte-americano desenvolve o argumento principal das esquerdas mundiais contra o mundo industrial. Argumento que se resume à crítica radical, ainda que bem-educada em discurso político, à exploração da natureza pelo ser humano. Tese que remontaria ao início das revoltas contra a modernidade, mas fiquemos na etapa mais tardia e inconsequente dessa era. Al Gore, o então candidato americano derrotado, se coloca à frente destes discursos voltados à preservação e à consciência de um futuro não abismado pelo aquecimento global e pelo domínio do urbanismo metropolitano desenvolvido pela commodity do petróleo.
Certamente, o filme deu o que falar nas prévias de eleições. Era um documentário e passava nos cinemas – inclusive fora dos EUA, pois foi até exibido no festival de Cannes, na França. Certo de que seu recado havia sido dado, Al Gore só consegue aquele êxito no cinema devido às invenções de um Michael Moore e suas ironias bem contemporâneas, que abriram espaço para outros documentários serem vistos na grande tela. Este último realizador tinha, inclusive, um programa de TV chamado The Awful Truth, talvez uma bela referência ao título dado na produção que estrela Gore, An Inconvenient Truth. Fora das TVs, nos ecrãs do cinema, aliás, documentários falam de uma realidade bem mais convincente. Ela parece bem mais dura, por conseguinte.
Neste ano de 2011, quando uma mulher é presidente do Brasil, outro presidente se traveste de “revolucionário” e resolve voltar a dar as caras na mídia com uma tese radical – à maneira da “esquerda ecológica” de Gore. Fernando Henrique Cardoso, presidente brasileiro entre 1995 e 2003, hoje mais jovial que em seus governos, considerados retratos do neoliberalismo inglês no Brasil, se lança como homem de frente de uma guerra que foge à política: a do tráfico. Encara todos os horríveis inconvenientes do uso de drogas e da compreensão global que esse mercado até agora ilícito tem construído. Certo de que sua propaganda pudesse chegar aos olhos e ouvidos do exterior, o filme objetiva algo mais que a provocação de um debate. Por erro de produção, foi lançado após os grandes festivais da Europa. Bom para a esquerda brasileira, que não vê o êxito de FHC ganhar as falas de mídias estrangeiras; ruim para o debate, que com o peso intelectual colocado pelo mesmo personagem se configura de uma forma ainda não encarada.
O olhar que falta
Nas suas últimas aparições, o personagem do PSDB – diga-se de passagem, partido que não consegue mais êxito em campanhas nacionais no país, se recolhendo ao lado mais conservador das grandes cidades do Sudeste –, tem se colocado como vanguarda na então tradicionalista maneira de se encarar as drogas. A saber, o presidente defende outra penalidade acima dos usuários de qualquer que seja o entorpecente. Uma “regulação” e a retirada do usuário do universo penal, na verdade. Reviravolta inesperada do principal arquiteto econômico do Plano Real.
O que não se tem observado com tanto rigor é o trabalho ainda incipiente em enraizamento social do então diretor e administrador (também publicitário). Distante daqueles documentários de João Moreira Salles, ou de Jorge Furtado e José Padilha, o filme de Fernando Grostein Andrade se coloca como ingênuo no que trata – mas nada neutro. A ingenuidade, ali, pressupõe um passo atrás do discurso mais incisivo contra a realidade horrível e injusta que o documentário em geral, como gênero, insiste em direcionar e denunciar. Intuitivo, Fernando deixa para os grandes nomes dos entrevistados os depoimentos. Nas falas, vê-se um combate à realidade de um pensamento um pouco amassado pela crença de que quem usa drogas deve ser execrado da realidade social. Um passo à frente, depois de alguns atrás.
Por se tratar de um filme paulistano, com todo o ornamento dessa cidade (desde o lado psdebista até o cosmopolitismo universalista do olhar da câmera), perdemos o teor latino-americano do problema. Sabe-se que os grandes produtores de feijão, milho, cana-de-açúcar, cocaína e maconha são os países periféricos, distantes do núcleo duro capitalista dos países do Norte. Infelizmente, não se vem a saber como é a brutalidade desse mercado de entorpecentes que ameniza, ironicamente, uma miséria persistente dos campos de concentração formados pelo apartheid comum das grandes metrópoles da parte Sul do Novo Mundo. Tal mercado é medieval em maneiras, ainda que seja internacionalista em subterfúgios de consumo. Esperemos outro documentário, quem sabe, agora da esquerda verdadeira, tratando do assunto com o olhar que lhe falta.
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[Mauro Luciano de Araújo é pesquisador em audiovisual e professor universitário, Salvador, BA]