Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Reportagens que mexem com a História

A Veja (edição 1.901, de 20/4/05) e o Fantástico (domingo, 17/4) da Rede Globo comemoraram antecipadamente os vinte anos da morte de Tancredo Neves com reportagens que acrescentam informações relevantes sobre os momentos finais − e decisivos − da passagem da ditadura para a democracia.


A reportagem da Globo fez uma ligação relevante entre doença, medicina e política. Foram reunidos 15 médicos do Incor, em São Paulo, que atenderam Tancredo na desesperada tentativa final de fazê-lo sobreviver.


Na segunda-feira (18/4), entretanto, a família de Tancredo reagiu com indignação, em comunicado à imprensa, às declarações dos médicos. No programa Roda Viva, da TV Cultura, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, e o publicitário Mauro Salles, que foram ambos colaboradores próximos de Tancredo no início dos anos 1980, contestaram a versão dos médicos ouvidos sobre a saúde de Tancredo.


Aécio, que morava com o avô em Brasília, disse que Tancredo passou mais de um ano sem ir a São João del Rey, onde, segundo um dos relatos divulgados pela TV Globo, se abasteceria de remédios para combater uma bacteremia, ou bacteriemia, que o dicionário (Houaiss) define como ‘presença de bactérias vivas no sangue, com ou sem reação apreciável por parte do paciente’. Mauro Salles garantiu que Tancredo só tomava vitaminas e, por indicação de um médico amigo, magnésio.


Questão de ética médica


Para entender melhor essa reação, o Observatório ouviu uma jornalista com longa experiência na cobertura de assuntos médicos. Ela pediu que seu nome não fosse revelado.


A jornalista questiona dois pontos.


Primeiro, afirma que a reportagem da TV Globo prometeu algo que não entregou, a revelação da verdadeira causa da morte de Tancredo. De fato, há vinte anos se sabe que Tancredo tinha um leiomioma, um tumor benigno, e não ‘diverticulite’. A Folha de S. Paulo deu a informação na época, e depois revistas médicas voltaram ao assunto.


Segundo, e mais grave, a jornalista critica os médicos por terem revelado informações de Tancredo sem pedir autorização à família. Acha que foi um absurdo. Segundo ela, o Código de Ética Médica é taxativo: é direito do paciente e dever do médico guardar segredo de todas as informações obtidas durante o tratamento. Nem mesmo  a morte do paciente libera-os do sigilo.


A jornalista está convencida de que David Uip e os demais médicos do Incor, ao participar de algo que denomina entrevista-show, infringiram lamentavelmente a ética médica. Considera que eles faltaram com respeito ao paciente Tancredo Neves e à sua família. Que era indispensável obter autorização da família para quebrar o sigilo médico.


Doença ocultada


Aceitas essas sérias ressalvas, ainda assim a reportagem da TV Globo é relevante, principalmente pela conclusão final de que, à luz de avanços posteriores da medicina, sabe-se agora que o presidente eleito já chegara ao Hospital de Base de Brasília com chances muito restritas de escapar da morte.


Quem se lembra do frenesi da imprensa em torno dos ‘erros médicos’, da raiva dirigida aos que acreditaram ilusoriamente ou fingiram que o paciente passava bem, especialmente o ‘professor doutor’ Henrique Walter Pinotti (por sinal ausente da reportagem), cirurgião que o operou e imaginou que ele teria uma rápida e sólida recuperação, sabe que essa ‘explicação’ foi amplamente aceita.


Ainda recentemente, em 1998, Ronaldo Costa Couto escreveu no livro História indiscreta da ditadura e da abertura: ‘Chamam os médicos, que decidem interná-lo no Hospital de Base de Brasília, unidade pública sem estrutura e condições mínimas para assistir um presidente da República. Involuntária sentença de morte’. (Cabe a pergunta: as condições mínimas para assistir um presidente são diferentes das condições mínimas para assistir outros cidadãos?) Em nota de pé de página, Costa Couto relata que o ex-presidente Ernesto Geisel achava ‘incrível (….) estar doente e esconder a doença. Não se tratar’.


A reportagem da Globo deixou patente todo o sentido político da manobra. Não há controvérsia quanto ao fato de que Tancredo silenciou sobre dores no abdome desde 8 de março até ir para o hospital, em 14 de março (é o registro feito pelo Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro). Praticou a omissão para não desmontar o enredo da redemocratização, tal como ele a concebia e ela ocorreu. E o caminho que Tancredo e muitos outros defendiam foi o melhor para do país, como se sabe hoje. Médicos mentiram e falsificaram laudos empenhados em preservar o homem que naquele momento encarnava a transição. Quem contestará que, nesse preciso caso, ainda sob ditadura e ante ameaça de golpe, os fins justificaram os meios?


Circula atualmente a boutade de que no Brasil até o passado é incerto. Mas não é só no Brasil. História é a releitura que se faz do conhecimento de fatos passados, que necessariamente são lidos com o instrumental e a consciência presentes. E sua mais importante finalidade social é ajudar a olhar para a frente.


Castellinho, o super-repórter


Provavelmente Carlos Castello Branco, o maior cronista político que o Brasil produziu, falecido em 1993, já tinha notícia da doença no início de 1985. Num texto para o caderno ‘Tancredo, a Ressurreição’ – com que o Jornal do Brasil, no dia da eleição no Colégio Eleitoral, 15 de janeiro, procurou comprar bilhete de entrada para a festa democrática, após anos de submissão aos interesses de Paulo Maluf – , Castellinho escreveu que Tancredo não chegava ao final de seus compromissos. E vinha uma lista de episódios, desde a época do segundo governo de Vargas, quando Tancredo foi o ministro da Justiça de um mandato interrompido. Deu raiva ler o texto frustrante de Castellinho, atribuído por insiders a uma diferença pessoal com o político mineiro. Mas ele tinha razão.


Duas mentiras para tentar salvar uma vida


A Globo diz que a mentira contada ao presidente eleito para convencê-lo a ir para o hospital, quando, na véspera do dia da posse, não agüentava mais de dor, foi que se tratava apenas de fazer um exame.


A reportagem da Veja (‘Tancredo barrou o golpe’) fala de outra mentira, contada por Francisco Dornelles, sobrinho de Tancredo. Para que o doente aceitasse se operar, diz a revista, Dornelles inventou uma visita ao Palácio do Planalto, onde o presidente João Figueiredo e o chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, lhe teriam dito que não viam nenhum inconveniente em dar posse a Sarney. O medo de que Figueiredo se recusasse a empossar Sarney havia feito Tancredo esconder a doença até da família.


As duas mentiras não são mutuamente excludentes.


E tudo faz sentido. Chorou-se tanto naqueles dias não propriamente por medo de que a democracia não fosse alcançada – o vice, José Sarney, havia sido devidamente empossado, fizera o discurso preparado por Tancredo e nomeara os ministros que Tancredo havia escolhido -, mas diante do drama do artífice principal da conquista da democracia, que se prejudicara para não pôr em risco o processo.


O povo entendeu o que estava em jogo naquela grande tragédia épica, como entendera no suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e na morte de Juscelino Kubitschek, em 1976.


Dispositivo militar


Político até a medula, Tancredo, revela a reportagem de Veja, montou uma espécie de ‘dispositivo militar’ próprio, mutatis mutandis como haviam feito Geisel em 1977, para demitir o ministro da Guerra, Silvio Frota, e, em novembro de 1955, o general Odílio Denis, comandante da Zona Militar Leste, em apoio ao demissionário ministro da Guerra, Henrique Lott, que acabaria garantindo a posse de Juscelino, candidato eleito nas eleições que se sucederam ao suicídio de Getúlio.


A reportagem revela os nomes de oficiais das três Forças recrutados por Tancredo para monitorar os movimentos da linha-dura que não aceitava a redemocratização. Brasileiros que desempenharam um papel estratégico e preferiram a discrição, longe da imprensa.


Veja mostra que ‘o Pires’, que Figueiredo sempre ameaçava ‘chamar’ (Walter Pires, ministro do Exército), teve de ser amansado por Tancredo, e aponta relatos sobre outros conspiradores. Em destaque um personagem que nas décadas seguintes teria freqüente exposição na mídia, nunca ‘do lado do bem’ – o general Newton Cruz.


No Roda Viva, da TV Cultura, nem Aécio Neves nem Mauro Salles negaram que tivesse havido mobilização de militares amigos de Tancredo, mas Aécio pareceu relativizar a importância política que esse apoio teve no processo.


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As reportagens da Veja e do Fantástico representam uma contribuição útil para o debate. Para os jornalistas que chegaram à profissão já sob a democracia, fica a lição: coragem e firmeza, como as demonstradas por Tancredo, sua família e tantos de seus colaboradores, são qualidades muito mais complexas do que faz supor a vã espetacularização da vida.