Nascido na cidade de São Paulo em 1943, Clóvis Rossi é colunista, repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo. Trabalhou no Jornal do Brasil e foi editor-chefe do Estado de S. Paulo. Teve participação em diversas coberturas internacionais de grande repercussão, tanto pelo Estadão como pela Folha, da qual foi correspondente em Buenos Aires e Madri.
Escreveu vários livros sobre jornalismo, entre eles Vale a pena ser jornalista? (Editora Moderna, 1986), no qual aborda os prós e os contras da profissão dizendo que ‘o que há de bom na profissão é essa coisa de poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. O que há de ruim é a exigência até irracional de dedicação plena’.
Clóvis Rossi considera que o jornalista que trabalha em jornal diário é um batalhador, que ‘precisa matar um leão por dia’. Aos 44 anos de profissão, diz que tem pela frente umas dez mil batalhas, todas interessantes, em grandes assuntos, mas também em pequenos pés-de-página.
Nesta entrevista o leitor vai conhecer a experiência de Rossi, sua opinião sobre o jornalismo nacional e por que prefere sair da tranqüilidade da redação para pôr os pés nas ruas atrás da boa notícia.
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Sabemos que você gostaria de ter sido diplomata, então por que decidiu vir a ser jornalista?
Clóvis Rossi – Porque não tinha idade ao terminar o curso Científico, como então se chamava, e prestar o vestibular para a carreira diplomática. Para não ficar parado, resolvi fazer o vestibular para jornalismo, passei, entrei na Faculdade. No segundo ano já fui indicado para uma vaga no Correio da Manhã (sucursal em São Paulo), fiquei, fui ficando, ficando, ficando…
O jornalismo é mesmo aquilo que você pensava ou você, com o tempo, percebeu que não tinha uma opinião bem-formada a respeito do dia-a-dia de uma redação?
C.R. – É evidente que o dia-a-dia varia muito de redação para redação, de momento histórico em momento histórico, de algumas funções que você exerce para outras, etc. Assim, não dá para responder genericamente. Além disso, eu nem tinha opinião formada sobre jornal, jornalismo e redação, quando fiz o vestibular e também quando comecei a trabalhar.
Com base na sua própria experiência você escreveu o livro Vale a pena ser jornalista?. Vale mesmo a pena?
C.R. – Sim, claro. O que há de bom na profissão é essa coisa de poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. O que há de ruim é a exigência até irracional de dedicação plena, direção na qual você é atirado pelo teu senso de responsabilidade. Deveria haver uma maneira de conciliar melhor as duas coisas, mas eu não aprendi ainda.
No livro O que é Jornalismo (Editora Brasiliense, 2005) você diz que jornalismo é uma batalha. Por quê?
C.R. – Disse que era uma batalha pela conquista das mentes e corações de leitores/ouvintes/telespectadores. Porque é preciso conquistá-los para ser lido/ouvido/visto, certo?
Quais foram as principais batalhas que você enfrentou no exercício da profissão?
C.R. – Quem, como eu, trabalho praticamente a vida toda em diário, sabe bem que é preciso matar um leão por dia. Portanto, com 44 anos de profissão, devo ter aí umas 10 mil batalhas, todas interessantes, em grandes assuntos, mas também em pequenos pés-de-página.
Você iniciou a sua carreira um ano antes de o Brasil sofrer um golpe militar que mergulhou o país na obscuridade das liberdades de imprensa e de expressão. Como você acha que a mídia se saiu diante desse quadro?
C.R. – Nunca falo da mídia como um todo, como se ela fosse homogênea. Há diferenças substanciais, acho, entre, digamos, Folha e Veja, Estadão e TV Globo e por aí vai. Logo, seria preciso fazer uma análise caso por caso para responder adequadamente, o que não tenho tempo nem condições de fazer apoiado apenas na memória, que é sempre traiçoeira.
O que você tem a dizer sobre a qualidade do jornalismo brasileiro?
C.R. – Acho que o bom jornalista brasileiro compete em igualdade de condições com o bom jornalista norte-americano ou europeu. O problema é que, pela qualidade da educação, os países desenvolvidos conseguem formar uma maior quantidade de jornalistas qualificados do que o Brasil. Mas a parte boa do nosso jornalismo não passa vergonha, não.
Que tipo de mídia atualmente no Brasil tem um projeto editorial mais plural e independente?
C.R. – A Folha de S. Paulo, sem dúvida.
Na Folha, além de escrever uma coluna você também foi editorialista. É difícil isentar o discurso do colunista da opinião do jornal?
C.R. – Faz tempo que não faço editoriais. E, quando os fiz, o enfoque era sempre bastante discutido previamente, o que me dava todos os subsídios para saber o que a instituição Folha queria dizer. Logo, não tinha maior dificuldade, até porque as diferenças de opinião não são tão agudas assim, creio. Eu apenas sou mais sangüíneo, digamos.
Por causa da internet, ficou mais difícil para um jornalista dar um furo de reportagem. Mas a rede também veicula muita inverdade. Nesse caso quais os cuidados que um repórter deve ter para não cometer as barrigas?
C.R. – Os cuidados são os mesmos de sempre. O trabalho do repórter (e os cuidados a ele associados) não mudou. Mudou apenas o modo de difundir a mensagem.
Ao contrário do padrão habitual, você é o tipo de colunista que gosta de pôr os pés fora da redação em busca da notícia. Por quê?
C.R. – Porque acho que a única maneira de ser feliz na profissão é como testemunha ocular da história do meu tempo. E não dá para ser testemunha de nada sem botar os olhos em cima do evento da hora.
Por que a cobertura da morte do Tancredo Neves foi a matéria mais difícil da sua vida?
C.R. – Porque o objeto da notícia ficava quatro andares acima de onde os jornalistas podiam ficar (a calçada do Incor) e porque eu sou profundamente ignorante em matéria de medicina, doenças, saúde etc.
Fale da sua experiência como correspondente internacional.
C.R. – Como correspondente foi uma experiência (riquíssima) de três anos na Argentina e uma de sete meses na Espanha. O resto, aí sim em grande quantidade, é como enviado especial.
Quais foram as coberturas mais importantes que você participou nos países em que trabalhou?
C.R. – Eu gostei muito do que fiz na Argentina, talvez porque pela primeira vez na vida (e já tinha quase 20 anos de carreira), recebi retorno do leitor (pelo menos do leitor argentino). Publiquei até o texto que os exilados argentinos no Brasil me dedicaram, quando anunciei meu retorno ao Brasil. Considero-o a minha melhor condecoração.
O resultado desse trabalho teve outros desdobramentos?
C.R. – Mais tarde, soube pelo porta-voz do presidente Kirchner, que os grupos da resistência argentina à ditadura xerocavam o material da Folha porque era o único que tratava de temas relativos a direitos humanos, mesmo durante a ditadura, coisa que a mídia local não podia fazer. Mas gostei de um monte de outras coisas, entre elas a chance de ter feito a cobertura da transição da ditadura para a democracia em um quilo de países (todos os da América do Sul em que houve a transição e ainda na Nicarágua, em El Salvador, na Espanha, em Portugal e na África do Sul).
Em El Salvador, o carro em que você viajava foi atingido por tiros, supostamente disparados por soldados do exército local. Qual foi a sua reação na hora?
C.R. – Nunca soubemos quem disparou. Minha reação foi me enfiar debaixo do painel, nem sei como, pelo meu tamanho.
Qual foi o episódio que lhe fez chorar durante uma cobertura na Argentina?
C.R. – Foi basicamente o seguinte: era um dia especial de manifestação das Madres de Plaza de Mayo. A ditadura, já abalada, cercou todos os acessos à Plaza, com um cordão de policiais-‘armários’. Eu caminhava pela avenida de Mayo, em direção à praça, pouco atrás de uma das mães, de lenço branco na cabeça, com o nome do filho desaparecido, rosto enrugado pela dor. Ela trombou com a barreira policial, pequenininha, frágil, absolutamente indefesa e disse à tropa: ‘Deixe-me passar que tenho um encontro marcado com meu filho’. O filho estava morto como todos sabíamos. Quem não choraria?
Você tem acompanhado, com muito interesse, as últimas reuniões de cúpula sobre as negociações de comércio exterior. O que lhe atrai tanto nesse tema?
C.R. – O fato de que elas giram em torno de tudo, literalmente tudo, o que o ser humano produz e comercializa transfronteiriçamente. Então, é uma chance enorme de aprender um montão de coisas.
Você escreveu um artigo dizendo que na Venezuela ‘a liberdade de imprensa é absoluta’. A não renovação da concessão da Radio Caracas Televisión (RCTV) não seria uma forma de censura à liberdade de expressão?
C.R. – Até agora eu mantenho a minha posição. Mas a cassação da Radio Caracas de Televisión seria, sem dúvida, censura à liberdade de expressão. Se houver a cassação da RCTV, mudo de opinião.
Você ouviu falar de algum governo, se é que existiu, que tenha se manifestado satisfeito com a mídia?
C.R. – Nenhum que eu saiba. Nem no Brasil nem no exterior.
Qual é a responsabilidade social dos jornalistas e dos meios de comunicação?
C.R. – É a mesma: publicar a melhor versão da verdade possível de obter. O conceito que não é meu, mas do Bob Woodward, aquele do escândalo Watergate, em palestra na USP, muitos anos atrás.
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Repórter do ABI Online