Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Resultados divulgados na base do ranking

A maneira como se divulgam na mídia os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio mais uma vez reincidiu no ranking, com primeiros e últimos colocados, melhores e piores, fortes e fracos, campeões e perdedores.

Tal simplificação não condiz com os objetivos apresentados pelo MEC, dentre os quais o principal é avaliar se o estudante, ao término da escolaridade básica, desenvolveu competências e habilidades julgadas necessárias para o exercício pleno da cidadania, oferecendo-lhe ao mesmo tempo referências para sua auto-avaliação. O conceito de cidadania como base epistemológica do Enem valoriza a formação ética, a autonomia intelectual e o pensamento crítico.

Este é o discurso oficial, alicerçado em louváveis pretensões pedagógicas. No final das contas, porém, sob a ótica dos jornalistas e, portanto, aos olhos do grande público, o desempenho dos alunos traduz-se em classificações, comparações e julgamentos em relação às escolas.

‘Mosteiro’ vs. ‘empresa’?

Os resultados do Enem 2007 levaram O Globo a estampar a seguinte manchete, na sexta-feira (4/4): ‘Rio tem as 3 melhores escolas do país’. No mesmo dia, a Folha de S.Paulo trouxe um caderno especial, com a chamada: ‘Rio tem 8 das 20 melhores escolas do país’. O Estado de S. Paulo, na sexta-feira, no seu caderno ‘Enem 2007’, enfatiza: ‘5 escolas públicas estão entre as 20 melhores no ensino médio’, explicando que são todas federais. E mais: ‘Técnicas lideram ranking das públicas’. E outra: ‘Treze das 20 melhores de SP são da capital’. E outra vez: ‘S. Bento, o melhor do País, aposta na tradição’.

No topo da lista nacional, o Colégio de São Bento carioca. A pedagogia dos beneditinos do Rio teve forte influência de D. Lourenço de Almeida Prado, reitor do colégio durante quatro décadas (de 1955 a 2001). São dele as palavras que definem a filosofia educacional adotada ali:

‘O homem é criatura de Deus, objeto do Amor e da Providência de Deus, e destinado a ir além de si mesmo, pela participação na vida divina. O homem é um ser perfectível e educável. […] O processo educacional é inseparável da formação religiosa, devendo ser firmado no ensino religioso, explícito, programado, ordenado.’

Como explicar que a mentalidade medieval produza resultados tão bons à luz dos critérios do MEC? Será o modelo ‘mosteiro masculino’ mais eficaz do que o modelo ‘empresa competitiva’ que alguns consideram a salvação da educação?

Chancela ou denúncia

Na Folha, Fábio Takahashi não perdoa: ‘Pior particular supera 75% das estaduais’. Refere-se às escolas de ensino médio da cidade de São Paulo. Ou seja, a maioria dos alunos da escola pública nesta cidade é vítima de uma situação calamitosa. A ‘melhor’, a ‘campeã’, é a Escola Rui Bloem, cujos diretores e professores, com o apoio dos pais dos alunos (Folha, 6/4), se desdobram para vencer dificuldades e limitações. Os professores trabalham com classes de 42 a 45 alunos. Os computadores são lentos e insuficientes. Há apenas um datashow para 3 mil alunos. O grande recurso didático, como se brinca na rede pública, é o GLS: giz, lousa e saliva.

Gilberto Dimenstein (na mesma Folha, 6/4) escreve uma dura verdade: os colégios particulares aguardam os resultados do Enem pensando no retorno econômico. Os pais que investem de R$ 1.000,00 a R$ 2.000,00 querem seus filhos em estabelecimentos de prestígio. O Enem pode tornar-se, neste caso, chancela ou denúncia. Por isso um colégio como o São Luís (SP) critica o 75º lugar que obteve entre as escolas privadas da capital paulista. Alega, com razão, que o resultado mais fraco dos alunos pobres, a quem concede bolsa de estudos e que cursam o ensino médio à noite, acabou prejudicando a imagem institucional.

Um pouco da calamidade

É que o Enem mostra apenas um ou dois aspectos da complexa situação educacional. Ajuda a avaliar, mas não contempla todas as dimensões em jogo. Os jesuítas acabaram sendo punidos, segundo a estrita e estreita visão do ‘campeonato Enem’, porque deram espaço a alunos com perfil de escola pública. Escolas públicas com alunos cujos pais são mais participantes e que se localizam em bairros um pouco melhores – a Escola Rui Bloem, por exemplo, encontra-se num bairro de bom nível, sossegado, não periférico –, superam as dificuldades e apresentam desempenho menos insatisfatório.

O MEC divulga os resultados, mas são os jornais e sites que estabelecem o rankeamento. E nessa hora erros podem acontecer. Segundo a Folha, as melhores escolas públicas do país são o Colégio de Aplicação da UFRJ e o da Federal de Viçosa (MG). Para o Estadão, são este Colégio da UFV e o de Aplicação da UFPE, no Recife. Seja como for, a Revista Época desta semana (n. 516), referindo-se ao Colégio de Aplicação de Viçosa como ‘a melhor pública do país’, faz a incômoda pergunta: ‘Todas podem ser assim?’. A resposta mais benevolente é… ainda não. Ainda não porque, entre outros fatores positivos, seus docentes recebem entre R$ 2.300,00 e R$ 5.800,00. Podem, assim, dedicar-se a uma só escola, preparar melhor as aulas, atender aos alunos com calma.

Se as particulares que saem mal na foto do Enem ficam preocupadas, parece que o mesmo não acontece com as inumeráveis escolas públicas de resultados sofríveis. Afora as conhecidas ilhas de excelência (escolas técnicas, colégios militares, escolas de aplicação), o ensino público e o público que dele usufrui olham com apatia para os números desfavoráveis. São apenas números que retratam um pouco, apenas um pouco da calamidade cotidiana.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br