Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Retratos dupla-face

No casamento do príncipe William com Catherine Middleton, o que fascina é que, nada tendo a ver conosco, a todos nos envolve. Sobretudo como consumidores de imagens, famintos de migalhas e indícios do inacessível, modo de vencer a distância que nos separa daquela realeza longínqua. É nesse abismo que se situam a fotografia e esses aventureiros do imaginário que são os paparazzi. Mas não só deles é feito o mundo da fotografia. Os profissionais de ingresso assegurado também estão lá, criando imagens de significação oposta às dos fotógrafos de rua. Mais que testemunhas, os fotógrafos são personagens do evento em que os fotografados se tornam mero objeto.

As duas categorias de fotógrafos têm suas funções no imaginário moderno, que se revelam em acontecimentos como esse. São eles que fazem a ponte entre o grande mundo dos intocáveis e o pequeno mundo dos supostos insignificantes. Se os royals mandam seu recado por meio da fotografia esperada e através dela estabelecem vínculos de continuidade da dinastia, os commons também mandam seu recado, pela fotografia inesperada, o da humanização do poder. É nesse diálogo que a monarquia se atualiza no marco da tradição. William e Kate são coadjuvantes do rei imaginário que se retrata tanto nas fotos indiscretas quanto nas solenes.

Se o casamento de Elizabeth II com o príncipe Philip foi, de certo modo, endogâmico, porque no interior de uma mesma família, o casamento de Charles com Diana começou a modificar essa tradição, o que se completa agora. Neste casamento estão ocorrendo rupturas e restaurações até radicais, reveladas pelas fotografias tanto dos paparazzi intrusos quanto dos fotógrafos inseridos, cujas diferenças de postura mostram aspectos até opostos desse rito de renovação da tradição monárquica inglesa. Mas a complementaridade das duas correntes de fotógrafos pode ser notada comparando-se duas fotografias de Kate Middleton.

Uma, de um inesperado fotógrafo de rua, que a flagrou pensativa, à janela de um ônibus urbano, um daqueles de dois andares. A outra, a do casal real anunciando o noivado, ela com o anel que foi da princesa Diana no anular da mão esquerda, exibido em falsa discrição. A dela no ônibus, uma bela intuição de fotógrafo, expõe uma futura rainha consorte mergulhada na cena mais emblemática do cotidiano. O olhar indiscreto e desconstrutivo do fotógrafo nos põe diante de uma monarquia cercada de presença plebeia por todos os lados.

Símbolos do poder

A foto em que se destaca a mão da noiva com o anel mostra-nos o outro lado. Identifica-a como membro vicário do corpo do rei, que é uma construção simbólica, muito mais que uma pessoa. Este casamento é um momento dessa construção. Muito antes que William se torne rei, como sucessor de seu pai, que será um dia George VII, o príncipe é antecipadamente revestido dos símbolos da pessoa que será no trono. Aquele anel nos diz que o rei é também a convocação dos defuntos de sua hereditariedade simbólica. Ele invoca, no dedo da futura rainha consorte, a presença da princesa de Gales, mãe do noivo. Na linhagem dinástica, por meio de Diana retorna um seu ancestral poderosamente simbólico, o rei Charles I, condenado à morte pelo Parlamento e decapitado em 1649. Num degrau da escadaria do Parlamento, uma placa ainda nos lembra que “aqui, Charles I ouviu sua sentença de morte”.

A decorrente república de Cromwell e a posterior restauração da monarquia inauguraram o regime monárquico moderno e parlamentar, o rei limitado ao simbólico e nem por isso menos essencial como instituição. A ascensão de um descendente de Charles I ao trono, que a entrada de Diana tornou possível, possibilitará o advento de um monarca inglês na sucessão de uma dinastia de origem alemã. O anel é a entrelinha política da desgermanização do trono inglês.

Quando Elizabeth II foi coroada, em 1953, os muitos detalhes da cerimônia, registrados em imagens, mostram como a coroação é a culminância de um longo processo dessa construção do rei. No momento mais solene, em Westminster, onde William casou com Kate, Elizabeth foi despojada da capa de arminho, do manto vermelho, do colar e da coroa de princesa de Gales. Ficou apenas com o vestido branco sobre o qual o arcebispo de Canterbury agregou a toga real e o manto imperial dourados. Após a rainha sentar-se no trono histórico de coroação do rei Eduardo, recebeu os punhos de ouro que atam suas mãos aos súditos, a espada da justiça, os cetros do poder e da soberania, o orbe da fé e finalmente a coroa, sob o pálio, para demonstrar que os símbolos do poder é que são importantes. Ela apenas o personifica ao ser com eles revestida.

Matrimônios e coroações, nesses casos, entrelaçam relações simbolicamente poderosas. Não só as da tradição. O voyeurismo fotográfico, que pretensamente desconstrói a majestade de suas vítimas, colocou os plebeus, silenciosamente, bem antes da plebeia Kate, no imaginário da monarquia.

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Professor emérito da Universidade de São Paulo, autor de A sociabilidade do homem simples (Editora Contexto)