‘A Secom (Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica) requisitou ontem à pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Regina Parreiras Martins um estudo por meio do qual ela concluiu que o ‘New York Times’ trata o Brasil com desprezo e preconceito.
O interesse surgiu um dia depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter determinado que um correspondente do jornal americano fosse expulso do Brasil por ter escrito uma reportagem afirmando que há uma preocupação nacional por causa de um suposto vício de Lula em bebidas alcóolicas.
‘Segundo eles [assessores da Secom], o ministro [Luiz Gushiken] quer o trabalho’, disse a pesquisadora, que foi contatada por telefone em São José dos Campos (SP).
Feito com base em reportagens que o ‘NYT’ publicou sobre o Brasil entre 1985 e 2000, o trabalho conclui que os americanos lêem versões preconceituosas sobre os brasileiros.
Ela acredita que seu estudo possa ser usado pelo Planalto como argumento para justificar a decisão de cancelar o visto do correspondente Larry Rohter. O governo americano reagiu -acusou o país de violar a liberdade de imprensa.
A assessoria de imprensa de Gushiken, no entanto, afirma que a solicitação do estudo ‘faz parte da rotina’ e que ele deve ir para os arquivos da Secom.
Martins passou quatro meses pesquisando na biblioteca do Congresso americano para sua dissertação de mestrado em lingüística. Segundo ela, os temas mais recorrentes sobre o Brasil são miséria, violência, carnaval e misticismo -muitas vezes com cunho racista.
‘Em 88, o ‘New York Times’ atribuiu a passividade política dos brasileiros a um misticismo exagerado. Argumentou que um assessor do [então] presidente José Sarney era astrólogo’, diz ela. ‘Quando diz que Lula é um bêbado, só reforça a visão deturpada que os americanos já têm do Brasil.’
No entanto, ela disse jamais ter visto no ‘NYT’ nada tão ‘pesado’: ‘Nunca um presidente brasileiro foi tão humilhado como Lula agora’.’
Carolina Brígido, Cristiane Jungblute Helena Celestino
‘STJ mantém jornalista no país’, copyright O Globo, 14/05/04
‘O Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu ao jornalista americano William Larry Rohter Junior, correspondente do ‘The New York Times’ no Brasil, um salvo-conduto que lhe permite permanecer no país até que seja julgado o mérito do pedido de hábeas-corpus apresentada em seu favor. O ministro Francisco Peçanha Martins, relator do caso no STJ, argumentou que em uma democracia ‘não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da administração’. O ministro também lembrou que o Brasil é um Estado democrático de direito devido à contribuição de pessoas como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Rohter teve seu visto suspenso e está ameaçado de expulsão do país por ter escrito uma reportagem afirmando que o presidente tem se excedido no consumo de bebidas alcoólicas.
Para Martins, o visto de permanência do jornalista não poderia ter sido revogado porque ele exerceu um direito assegurado pela Constituição: o de externar a sua opinião no exercício de atividade jornalística. A liminar foi concedida em um pedido ajuizado pelo senador Sérgio Cabral Filho (PMDB-RJ) anteontem. Como o ato do governo de cancelamento do visto não estava anexado à ação, o relator deu um prazo de 72 horas para o Ministério da Justiça se manifestar sobre o caso.
Quando essas informações chegarem ao STJ, o magistrado deverá solicitar um parecer ao Ministério Público Federal. Somente então a questão terá o mérito julgado pela Segunda Turma do tribunal. Não existe previsão de data para o julgamento. No entanto, Martins afirmou que Rohter, de posse da liminar, terá o direito de ficar no país e de exercer a profissão até o julgamento do mérito da ação. Ontem, outras duas ações foram ajuizadas no STJ em defesa do repórter. Martins determinou o julgamento conjunto de todas elas.
Governo decide não recorrer ao STJ
Após uma reunião do presidente com seus assessores jurídicos, o ministro interino da Justiça, Luiz Paulo Barreto, informou ontem à noite que o governo não vai recorrer da decisão do STJ. Barreto disse que o governo entende que a decisão do tribunal não anula o ato de cancelamento do visto do correspondente. O ministro interino explicou que o STJ apenas concedeu uma medida cautelar em favor do jornalista e que pediu informações ao Ministério da Justiça sobre o caso.
– Na realidade, a decisão do STJ é uma mera medida cautelar, muito comum no direito, que não suspende a eficácia da decisão do Ministério da Justiça no que diz respeito ao cancelamento do visto. A suspensão do visto continua válida – disse o ministro interino.
Segundo Barreto, o jornalista, que está no exterior, ainda nem foi notificado pelo Ministério da Justiça da decisão de cancelar o seu visto. De acordo com ele, Rohter poderá ser notificado quando desembarcar no país.
A Advocacia Geral da União (AGU) tem o mesmo entendimento. O advogado-geral da União, Álvaro Ribeiro da Costa, que esteve no fim da tarde de ontem com Lula, divulgou nota dizendo que ‘não há razão para recorrer contra a concessão de salvo-conduto’.
Jornal americano elogia a Justiça brasileira
O ‘New York Times’ manifestou ontem sua satisfação com a decisão da Justiça brasileira de cancelar a expulsão de Rohter, chefe do escritório do jornal no Rio de Janeiro. Em nota assinada pela porta-voz Catherine Mathis, o jornal afirma que espera resolver toda esta questão o mais rapidamente possível.
‘Nós estamos felizes com a decisão dos juízes, que veio em resposta a uma ação proposta por um senador brasileiro. Nós esperamos que o direito de Rohter manter o seu visto seja preservado e estamos na expectativa de ver esta questão resolvida o mais rapidamente possível por meio dos canais institucionais apropriados’, disse a nota do jornal.
Até ter conhecimento da decisão judicial, Catherine Mathis informava que o jornal não tinha a intenção de voltar a se manifestar sobre a decisão do governo brasileiro de cancelar o visto de Rohter em represália à reportagem considerada ofensiva à honra do presidente. A porta-voz recusou-se também a fazer qualquer comentário sobre a informação de que o governo brasileiro estaria disposto a recuar se houvesse um pedido público de desculpas por parte da direção do jornal americano.’
Ilimar Franco e Lydia Medeiros
‘Lula avisa que só recua da expulsão se ‘NYT’ se retratar’, copyright O Globo, 14/05/04
‘Fracassou a gestão do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), e dos líderes do governo e dos partidos aliados na Casa para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva revisse a decisão de cancelar o visto do jornalista americano Larry Rohter, do ‘New York Times’. No encontro com os senadores, ontem, o presidente nem deu espaço para pedirem que recuasse. Reafirmou logo que a atitude foi refletida e que não havia encontrado outro instrumento para defender sua imagem. Lula só admitiu voltar atrás se houver uma retratação do jornal ou do jornalista, o que ainda está sendo negociado.
– Sei que a imprensa terá uma atitude crítica e entendo. Mas sou o homem público que mais apanhou neste país. Tenho a casca dura – disse o presidente aos senadores na reunião, que também contou com a presença dos ministros Aldo Rebelo, da Coordenação Política, e José Dirceu, da Casa Civil.
O presidente relatou aos senadores não ter aceitado, por considerar insuficiente, o esboço de uma carta negociada pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, com o ‘New York Times’ que lhe foi remetido na véspera:
– O Márcio conversou com um advogado do jornal, que é seu amigo. A carta de retratação proposta resolvia o problema do jornalista, mas não resolvia o meu. Isso não vale nada.
Lula disse ainda que não pretendia mudar de comportamento por causa da reportagem:
– Vou continuar tomando meu uisquezinho na frente de fotógrafos. Nada fiz de errado.
Os senadores prestaram solidariedade a Lula pelo tom ofensivo da reportagem de Rohter, que afirma que o país estaria preocupado com suposto excesso do presidente com bebidas alcoólicas. Na véspera, à noite, o líder do governo, Aloizio Mercadante (PT-SP), que se declarou contrário ao cancelamento do visto, falara com o presidente duas vezes e julgara que Lula poderia voltar atrás. Chegou a convidar para a visita ao Planalto os líderes de oposição. Mas os senadores Arthur Virgílio (PSDB-AM), José Agripino (PFL-RN) e Jefferson Péres (PDT-AM) desistiram de participar da audiência devido à conotação partidária que a questão poderia assumir.
– O presidente disse que sua posição não era pessoal, mas obedecia a razões de Estado, pois na reportagem havia uma ofensa à Presidência da República – afirmou Sarney.
Mercadante estava otimista porque na noite de anteontem o presidente aguardava as negociações entre Bastos e o advogado do jornal americano. O próprio Sarney foi ao encontro de Lula imaginando que haveria uma articulação para que, diante do apelo dos senadores, Lula voltasse atrás. Por isso, retornou ao Senado contrariado com Mercadante por tê-lo convidado a participar de uma iniciativa que acabou frustrada.
A pedido de Lula, o chefe do Gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, telefonou ontem para a Suíça para conversar com o ministro da Justiça sobre os boatos de que ele pediria demissão. O presidente falou com o ministro três vezes ontem. Segundo assessores de Lula, Bastos disse que não tinha concordado com a decisão de cancelamento do visto de Rohter, mas negou que sairia do governo. Hoje, o ministro chega ao Brasil e se reúne com Lula para tentar demover o presidente da idéia de levar adiante o processo de deportação de Rohter.
No início da noite, o Palácio do Planalto desmentiu os rumores sobre Bastos.
– Conversei com o ministro e ele não me falou nada disso. Esse tipo de atitude não combina com o temperamento dele – disse um dos auxiliares de Bastos.
Os boatos sobre a saída de Bastos surgiram depois da divulgação das informações de que Lula decidiu pelo cancelamento do visto de Rohter sem consultá-lo. A cassação do visto foi assinada pelo ministro interino da Justiça, Luiz Paulo Barreto. Mas, para auxiliares e amigos que conversaram com Bastos nos dois últimos dias, os rumores são improcedentes. Prova disso é que, mesmo na Suíça, ele passou o dia ontem tentando encontrar uma saída para o problema. Depois de o presidente Lula rejeitar o teor da carta sugerida pelo jornal, o ministro teria ficado incumbido de fazer novos contatos com representantes do ‘New York Times’. Apesar do novo fracasso, integrantes do governo continuavam ontem na expectativa de que Lula voltasse atrás com a volta hoje do ministro. COLABORARAM Catia Seabra, Cristiane Jungblut e Jailton de Carvalho’
Adriana Vasconcelos, Catia Seabra e Cristiane Jungblut
‘Lula diz que medida deve ser exemplo’, copyright O Globo, 13/05/04
‘A repercussão negativa da decisão do governo de cassar o visto do correspondente do ‘New York Times’ Larry Rohter não abalou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No café da manhã com líderes da base na Câmara ontem, quando o assunto foi abordado pelo vice-líder do governo, Vicente Cascione (PTB-SP), Lula não deu qualquer sinal de arrependimento. O presidente disse que a medida servirá de exemplo para outros correspondentes estrangeiros e acabou fazendo um desabafo: nunca prometeu ser santo quando candidato a presidente.
– Não poso de santo. Nunca fui candidato a santo. Fumar, eu fumo. Já tomei um copo de cerveja. Agora dizer o que ele (Rohter) disse é porque ele não me conhece – disse o presidente.
Para Lula, a gravidade do episódio levou o governo a ter que adotar uma ação exemplar.
– Se eu não tomasse essa medida, qualquer outro jornalista de qualquer outro país poderia fazer o mesmo, sem preocupação com punições – afirmou o presidente, segundo relato dos líderes.
Lula justificou a medida e contou ter ficado sabendo que uma outra equipe do ‘Times’ fora designada para fazer uma reportagem sobre o governo porque Rohter teria ligações com políticos tucanos. Na conversa com os aliados, o presidente reiterou seu incômodo com o fato de ter sido acusado pelo jornalista americano de estar abusando do consumo de bebidas alcóolicas. Lula argumentou que a reportagem era uma afronta às instituições brasileiras. O presidente lembrou o caso de extradição do piloto da American Airlines depois de fazer gestos obscenos no aeroporto de Guarulhos (SP) e disse que, no caso de Rohter, a ofensa foi ainda maior.
Lula: visto não será renovado, mesmo com novo pedido
O presidente disse ainda que sua decisão era irreversível e que o visto não seria renovado, mesmo que fosse feita uma nova solicitação. Para Lula, a motivação da reportagem está relacionada à presença do governo brasileiro no debate internacional contra o protecionismo dos países ricos. Neste contexto, disse, o objetivo da reportagem seria apresentá-lo ao público americano como um presidente caricato. Para Lula, o objetivo foi enfraquecer a posição do Brasil em fóruns internacionais.
– Suas fontes estão a 300 mil quilômetros de mim. Estamos alterando a geografia comercial vigente no mundo e isso incomoda muita gente – disse o presidente. COLABOROU Ilimar Franco’
Cristiane Jungblute e Ilimar Franco
‘Gushiken avisa a correspondentes: ‘Não existe o direito de calúnia’’, copyright O Globo, 14/05/04
‘O chefe da Secretaria de Comunicação de Governo, Luiz Gushiken, refutou ontem durante almoço com treze correspondentes estrangeiros as comparações entre a atitude do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de cancelar o visto do jornalista Larry Rother, e o comportamento dos presidentes Fidel Castro (Cuba) e Roberto Mugabe (Zimbábue). No encontro, marcado antes da publicação da reportagem de Rother, o ministro defendeu a decisão do presidente e garantiu que não há cerceamento à liberdade de imprensa. Afirmou tratar-se de um caso isolado.
Gushiken manteve a calma até quando um dos correspondentes afirmou que o Brasil poderia ficar marcado como uma ditadura.
– Vocês sabem em que regime vivem e o respeito que se tem no país pela liberdade de imprensa – disse Gushiken, segundo um dos presentes.
Ministro acabou se irritando com perguntas
O ministro, no entanto, irritou-se com outras perguntas.
– Você está perguntando se existe o direito de calúnia. Acho que não existe o direito de calúnia. Quando você ofende valores de uma sociedade, quando a condição moral dos governantes é atacada com falsidade de dados, não me parece uma prática de jornalista que deva ser aceita em qualquer lugar do mundo. Penso que acima do interesse da comunicação está a defesa da verdade – disse Gushiken.
Durante o encontro, o ministro foi informado da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de suspender temporariamente o cancelamento do visto do jornalista. Gushiken, então, afirmou que o governo respeitará qualquer decisão do Judiciário. Ele negou ainda que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, estaria deixando o cargo.
Ao ser perguntado se o comportamento de Lula não lembrava mais o de Fidel ou Mugabe do que o de alguém que combateu o regime militar, Gushiken respondeu:
– Não tem procedência de comparação. Essa medida do presidente não foi um ataque à imprensa. O cancelamento do visto é prerrogativa do chefe do Poder Executivo.
O ministro afirmou que o jornalista falsificou dados e atacou a honra do presidente e que os correspondente deviam entender o rigor da ação do governo como uma resposta a um ato isolado de irresponsabilidade. Gushiken acrescentou que não se tratava de uma questão de liberdade de imprensa, mas de restabelecimento da verdade. Disse ainda que o presidente quis zelar pelo seu passado e pela sua condição moral.
– É natural que o nosso presidente busque uma resposta que resguarde o respeito que se deve ter, não apenas pela instituição da Presidência, mas pela reputação e a honra dele. Não há nada que diga respeito ao cerceamento à liberdade de imprensa – disse Gushiken.
Alguns jornalistas estrangeiros deram entrevistas após o almoço. Eles informaram que o ministro não tentou convencê-los de que agira corretamente, mas apenas justificar a posição do governo brasileiro. Relataram que, diante das manifestações de preocupação com a liberdade de imprensa, o ministro argumentou que se tratava de uma situação específica e que não poderia ser generalizada.
– Consideramos um erro estratégico porque pegou muito mal. Claro que a gente não concorda com a medida e não há argumento que vá nos convencer. E isso por uma razão muito óbvia: sem entrar no mérito da reportagem, certamente uma medidas dessa não é a melhor forma de reagir – disse Carlos Caminada, da Bloomberg News.
– O ministro foi muito cordial. Ele insistiu que a decisão está correta. E disse que é um assunto de tribunais, que existe o Judiciário e que o governo aceita. Ele disse que a imprensa é livre no Brasil e que tínhamos que reconhecer isso – acrescentou Gerald Jeffris, da Dow Jones.
Presidente diz que não usa métodos autoritários
Sem citar o episódio envolvendo o correspondente do ‘New York Times’, Lula afirmou ontem que não utiliza métodos autoritários e que seu governo prioriza o diálogo e a negociação para resolver os problemas do país. Ao discursar no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o presidente disse que sua forma de governar inclui reuniões e discussões com todos os setores sociais. Anteontem, Lula frisara que seu governo é pautado belo bom senso.
– Em toda a nossa vida sindical, partidária, de oposição, e agora de governo, defendemos e praticamos o diálogo democrático, a negociação política intensa com base nesses princípios. Esse diálogo, vocês sabem muito bem, não é apenas legítimo e justo. Por meio dele, estamos resolvendo problemas do nosso país que nunca foram resolvidos, muito menos por métodos autoritários – afirmou ontem Lula, ao discursar na reunião do conselho.
Lula disse ainda que sua política externa é um sucesso:
– Tenho certeza de que ninguém aqui tem dúvidas sobre o acerto da nossa política externa. Os resultados já estão mais do que evidentes e estão influindo positivamente na construção de uma nova e verdadeira geografia comercial. O Brasil está cada vez mais respeitado em todo o mundo. E tem feito e o faz por merecer – afirmou o presidente.’