Cinegrafistas, fotógrafos, repórteres ‘malditos’ – ou seja, que estão fora do jet set há tempos – protagonizam uma revolução silenciosa. Vez ou outra, como numa erupção, são lançados sob os holofotes. Então, o mundo – espantado, e sempre tardiamente – paga tributo à sua coragem e idealismo.
Pessoas como a jornalista irlandesa Veronica Guerin, já por nós enfocada em outro artigo aqui publicado, demonstraram o poder do jornalismo para o bem, e mesmo para a redenção.
É justamente a palavra ‘redenção’ que sintetiza um trabalho sublime feito pela fotógrafa, cineasta e ativista inglesa Zana Briski junto a um dos quadros mais trágicos que se possa imaginar, envolvendo crianças.
A extrema pobreza da Índia, não obstante suas conquistas científicas e econômicas, choca profundamente o ocidental que a visita. Não foi diferente com Zana Briski, que em duas viagens para lá, na década de 90 do século passado, resolveu documentar a vida dos filhos das prostitutas do ‘distrito da luz vermelha’ de Calcutá.
As crianças da luz vermelha
Em um país onde a divisão de castas ainda violenta milhões, as prostitutas são consideradas piores do que párias; e como elas, seus filhos não são considerado sequer humanos. Pois foi justamente se envolvendo com a vida terrível dessas crianças que Zana, em um impulso de profunda compaixão, se lançou voluntariamente a dar aulas de fotografia a um grupo delas, com resultados tão surpreendentes que mal se pode acreditar.
Crianças analfabetas, traumatizadas diariamente por pais violentos e viciados, bem como por uma sociedade injusta, encontraram na ‘Tia Zana’ (conforme a fotógrafa ficou conhecida entre eles), mais do que uma professora, mas uma amiga e protetora.
Zana percebeu que para ser aceita por aquelas pessoas, precisaria se juntar a elas, e se integrou aos subúrbios de meretrício em Calcutá, tornando-se uma figura presente na vida de seus habitantes. Em famílias onde a prostituição perpassa gerações (avó, mãe e filhas), Zana, juntamente com o cinegrafista e também ativista inglês Ross Kauffman, resolveu documentar em vídeo o seu dia-a-dia com as crianças da luz vermelha.
Reverência e admiração
Seu envolvimento foi ficando tão profundo, o horror da condição dos pequenos tão intenso e o espanto pelos resultados obtidos com as aulas (que revelaram talentos natos) tão contundente, que Briski determinou-se a abraçar a causa das crianças, tentando fazer o aparentemente impossível: integrá-las à sociedade indiana, colocando-as em escolas e inscrevendo seus trabalhos fotográficos em exposições de fotojornalismo na Índia.
Enfrentando uma pavorosa e arcaica burocracia, o preconceito milenar, afrontas e humilhações de todo tipo, ‘Tia Zana’ não desistiu e conseguiu salvar algumas crianças de um destino que seria, nas palavras dela, pior do que a morte. Escolas as aceitaram e o país reconheceu o trabalho fotográfico dos pequenos. Aliás, o mundo, já que pelo menos uma das crianças, o jovem Aivijit Bucket, mereceu ser convidado para uma exposição na Europa.
Contudo, alguns anos se passaram em tentativas e reveses antes que os primeiros frutos pudessem ser colhidos…
O resultado desse trabalho é o fabuloso documentário Nascidos em Bordéis (Born Into Brothels – Calcutta´s Red Light Kids, EUA, 2004), que chocou o mundo pela condição dos filhos das prostitutas de Calcutá, mas também encantou pela coragem e determinação de Briski. Laureado com o Academy Awards (Oscar) em 2005 e com uma série de outros prêmios pelo mundo, o filme está disponível no Brasil (Focus Filmes, 85´) e merece não só a nossa atenção, mas ser incluído como material didático em escolas e faculdades.
Se o documentário choca por um lado, arrebata pelo outro. É profundamente emocionante ver a fotografia transformando a vida de crianças desesperançadas, talentos emergindo em pequenos marginalizados. As crianças, instadas a sair pelas ruas e documentar em foto o que achassem interessante, produziram mais do que fotos, produziram arte… – e deram uma grande lição a todos nós.
Assim como Zana Briski, mulher, profissional e guerreira, deu uma lição imperecível ao mundo: sempre é possível! À ‘Tia Zana’, nossa perpétua reverência e admiração.
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Jornalista, especialista em Comunicação e Cultura, mestre em Filosofia, Curitiba, PR