Existem certos inventos que mudaram o mundo, mas cuja paternidade não é dada ao verdadeiro inventor. Eis dois casos emblemáticos.
O mundo inteiro sabe que o inventor do telefone foi Alexander Grahan Bell (1847-1922) filólogo escocês que viveu em Boston, Estados Unidos. Todavia a realidade é outra: o florentino Antonio Meucci (1808-1889), emigrou inicialmente para Cuba (1831) e depois para os Estados Unidos (1850), estabelecendo-se em Staten Island, em frente a New York, onde montou uma fábrica de velas.
Essa fábrica tem uma história curiosa; não ia muito bem, pois em vez de fabricar velas Meucci preferia fazer suas experiências com energia elétrica. A coisa estava nesse pé quando chega exilado, depois da queda da República Romana, Giuseppe Garibaldi. Hospedou-se na casa de Meucci e, enquanto ele fazia suas experiências, o ‘Herói dos dois mundos’ tocava com sucesso a fábrica. Esse fato permitiu a Meucci inventar o que ele chamou de ‘telégrafo falante’. Registrou sua patente em 1871, mas não teve recursos nem para levá-la avante nem para pagar a renovação. Cinco anos depois, no dia do vencimento de sua patente e no espaço de uma hora, foram registradas duas patentes idênticas – de Alexander Graham Bell e a de Elish Grey.
Meucci entrou com um processo contra Bell, que reconheceu perante a Corte Suprema do Estados Unidos ter mentido, não ter sido o inventor do telefone, e dessa forma o italiano, como prêmio de consolação, obteve o direito que o aparelho se chamasse Meucci.
Revista cara
A outra invenção, que teve sua paternidade usurpada foi a do avião, que pertence ao brasileiro Santos-Dumont, mas que para o mundo inteiro – menos para o Brasil e a França – é dos irmãos Wright [Orville (1871-1948) e Wilbur (1867-1912)].
Alberto Santos-Dumont (1876-1932), depois de diversos vôos em balões e experiências com o mais pesado que o ar, em 23 de outubro de 1906 realizou em Paris o primeiro vôo mecânico no mundo devidamente homologado – isto é, sem outro auxilio que não o do aparelho 14 Bis, decolou, voou e pousou.
Em 1908 apareceram os irmãos Wright reivindicando a primazia, para tal apresentaram como provas algumas fotografias supostamente feitas em 1903, o próprio diário e algumas poucas testemunhas – aliás, de amigos. A fotografia mais famosa, que mostra o aparelho em vôo, além de data desconhecida deixa ver algo curioso: o monotrilho da catapulta que servia para lançar ao ar o aparelho – portanto não podia alçar-se per se.
Os fatos acima não se tratam de mera patriotada, mas de uma pesquisa que realizei em 1986 e que resultou no verbete ‘Santos-Dumont’, do Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica (organizado por Ronaldo Rogério de Freitas Mourão).
Foi por isso que, na semana passada, ao entrar no jornaleiro, chamou especial atenção uma revista em cuja capa podia-se ver a fotografia de Santos-Dumont, que é totalmente desconhecido na Itália. Havia pouco lera uma uma nota da colunista Marcia Peltier (Jornal do Brasil), segundo a qual o secretário de Energia do Rio de Janeiro, Wagner Victer, havia-se indignado ao constatar que a revista inglesa Rolls Royce havia dado a paternidade do avião aos irmão Wright, e ao saber que a casa Cartier estaria relançando o relógio Santos pela bagatela de 37 mil dólares a unidade.
Comprei a revista, que não conhecia – a Monsieur –, uma publicação masculina altamente sofisticada ou, como ela mesma se qualifica, ‘a revista do homem extravagante’. Lembra a Senhor brasileira, dos anos 1960. Sua periodicidade é mensal e circula há quatro anos, tem formato particular (25x33cm) e preço alto: 8 euros – algo como o preço de um livro.
‘Ordem crononológica’
A matéria sobre Santos-Dumont é assinada por Franco Cosini e ilustrada com várias e raras fotografias. O inventor é classificado como um dândi e na página ao lado anuncia-se um paletó com colete de cashmere por 1.300 euros, uma par de sapatos Berluti por 970 euros.
‘Em 1901 – começa Franco – no primeiro ano do século 20, um grupo de experts em elegância e do ‘life-style’ interrogados pela imprensa internacional, estabeleceram que o homem mais famoso do mundo era Alberto Santos-Dumont. A coisa hoje pode causar estupor. Excluindo a sua pátria, o Brasil, quantas pessoas sabem dizer quem foi Santos-Dumont? Responder uma sobre cem, dez sobre mil, seria provavelmente um exagero. Sic transit gloria mundi. E também a glória de Santos-Dumont era algo mais que ligada à efêmera e passageira moda. Imaginem que esse fascinante jovem brasileiro, transplantado a Paris (que em 1901 tinha somente 28 anos, sua altura não passava do metro e sessenta pesando pouco mais de cinqüenta quilos) era o ser humano, que desde os tempos de Ícaro, melhor que qualquer outro conseguira encarnar um dos sonhos mais antigos do homem: voar’.
O jornalista continua, contando a história dos dirigíveis, do 14 Bis, da generosidade de Santos-Dumont, distribuindo o dinheiro dos prêmios recebidos e comete, como sói aos estrangeiros que falam do Brasil, seus equívocos ao classificar o pai do inventor como o proprietário da maior fazenda de café existente no mundo. Mas, no conjunto, via muito bem:
‘Contudo damos voltas às dez pessoas em mil, que de forma otimista saibam hoje quem foi e o que fez Santos-Dumont. Pois bem, dessas dez pessoas, talvez uma se dedique à história da aviação: as outras nove, podem apostar, serão mais que tudo cultoras da história da relojoaria, ou colecionadores de relógios. Certamente nessa última categoria não existe quem não conheça o nome do ilustre brasileiro. Esse nome, de fato, ficou indissoluvelmente ligado ao nascimento do relógio de pulso. Entre seus amigos figurava Louis Cartier, o grande joalheiro. Uma noite em 1904, enquanto jantavam juntos no Maxim’s, Alberto contou a Cartier os problemas que enfrentava com os relógios de bolso, pois não podia consultá-los quando estava no comando de seus veículos, pois tinha as mãos ocupadas. Tinha necessidade de algo mais prático. Foi assim que Louis Cartier fez para ele aquele que é considerado o primeiro relógio de pulso da história. Uma caixa de ouro com o quadrante bem visível, com duas correias de couro e uma fivela para prendê-lo ao braço. A peça tornou-se famosa e o joalheiro poucos anos depois, começou a comercializar o modelo a que deu o nome Santos’.
Nessa parte se percebe o dedo de Franz Botrè, fundador, dono, editor de Monsieur e um dos maiores colecionadores europeus de relógios. Das 242 páginas de sua revista, 92 são dedicadas à propaganda e destas 37 (40%) são de relógios. Provavelmente essa condição também terá influenciado no fecho da matéria:
‘O seu nome continua célebre no mundo inteiro, noblesse oblige, o que não foi consentido aos irmãos Wright. O relógio respeita implacavelmente a ordem cronológica, esta é sua função’.
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Jornalista