Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saúde em foco ou desfocada?

Sempre fui da opinião de que assuntos ligados à saúde, particularmente a medicina, deveriam ter ampla e responsável divulgação. Prova disso é a quantidade de matérias, manchetes e capas dos variados veículos de comunicação que atestam o interesse pelo assunto, o que é mais do que natural. Os próprios médicos deveriam participar de maneira mais ativa e propositiva dessa divulgação, mas muitos temem, por desconhecimento, o Código de Ética Medica: sem dúvida, há profissionais que divulgam coisas erradas, sem falar naqueles que o fazem como propaganda nada dissimulada e muitas vezes enganosa. Mas os bons médicos não deveriam ter o que temer.

Matérias de apelo importante junto ao público não raramente acabam por despertar sérias dúvidas quanto à credibilidade e mesmo lisura das informações, pois ocorrem conflitos gritantes de interesses de ordem comercial e publicitária.

Dessa maneira, não pude deixar de festejar intimamente quando a Folha de S.Paulo lançou caderno especificamente dedicado à saúde. Com o passar do tempo, contudo, foi possível verificar que a maioria dos temas abordados, destarte a boa qualificação dos jornalistas responsáveis pela nova seção, dirigia-se a assuntos de maior especificidade, talvez a público mais restrito. Claro que todos os temas merecem espaço, mas passei a me perguntar se faria diferença se as mesmas notícias fossem publicadas em outras editorias mais tradicionais, como ciência ou cotidiano, e mesmo no caderno ‘Equilíbrio’. Pouco espaço pareceu ser dado à saúde pública e mesmo a comentários de outras coisas que apareceram no mesmo periódico. Vou explicar melhor com alguns exemplos a seguir.

À espera de novo curativo

Antes, contudo, foi com sensação de conforto que li ser a minha opinião a mesma do ombudsman da Folha, conforme seção própria publicada no domingo (16/11) [ver ‘Saúde é mais que hedonismo egoísta‘].

Um dos exemplos: a própria Folha, dentre vários outros meios de comunicação, deu espaço considerável a assunto realmente preocupante: o exame que o CRM de São Paulo há alguns anos aplica aos sextanistas, formandos, portanto, mostra uma gradual degradação da qualidade dos conhecimentos desses quase médicos. A última versão do exame mostrou que mais de 60% estariam despreparados para atuar na mais corriqueira das atividades dos médicos jovens, a emergência, assim como o atendimento ambulatorial. E um número vergonhosamente alto de respostas erradas foi dado a questões simples de doenças absurdamente comuns e de conhecimento obrigatório para qualquer profissional da área: tuberculose e diabetes.

Impressionou verificar que as matérias sobre o assunto eram quase repetitivas de algum press release da entidade ou das entrevistas formais dos diretores do órgão: os mesmos comentários assinalando críticas à quantidade de novas escolas médicas sem condições de ensinar algo minimamente decente, onde o padrão de qualidade da profissão aproxima-se da tal tolerância zero por razões óbvias.

Mas da própria Folha ao Fantástico, tudo pareceu repetir-se. E o novo caderno do jornal paulista bem que poderia fazer a diferença. Mas não fez.

O exame do CRM não é obrigatório, como o da OAB. Qual a lógica, então, do Conselho paulista dedicar-se a essa ingrata tarefa? Ora, a resposta e simples: não há previsão legal para tal exame tornar-se passo final para um médico entrar no mercado de trabalho. Mesmo que o CRM criasse centenas de portarias e resoluções para obrigar todos os formandos a prestar o mesmo, qualquer aluno, com um advogado, conseguiria facilmente uma liminar na justiça para obter sua inscrição no CRM, com certeza confirmada no julgamento de mérito.

E por que não se modifica a lei? Acreditem, há mais de quinze anos que se tenta. Mas os projetos de lei param na Comissão de Constituição e Justiça, no máximo, e não vão a plenário. É melhor indagar aos senhores congressistas a razão disso, pois as entidades médicas de tudo já fizeram (e continuam fazendo) para mudar a situação. Da mesma forma que não aprovam a já idosa emenda 29, que regulamentaria a distribuição de recursos do orçamento para a saúde e sua divisão entre a União, estados e municípios. Mas continua lá, paradinha, à espera, talvez, de novo curativo para o setor, sempre duvidoso, uma versão da CPMF, a CSS…

Conversa esquizóide

E quem deixa serem abertas tantas escolas médicas de má qualidade no país e não as fiscaliza e fecha como deveria acontecer? Não compete ao CRM, também, e sim ao MEC. Uma Reforma Flexner, que na década de 1920 fechou a grande maioria das faculdades de medicina na América do Norte, seria bem vinda por aqui. Mas quem se aventura? Se nem a imprensa cobra, não serão pacientes mortos por má prática que se farão ouvir.

Outro bom exemplo seria o de artigo assinado publicado na página 3 do referido jornal, em que dermatologista a quem não conheço pessoalmente, formado na USP e com residência médica, estágios e pesquisas nos melhores centros dos EUA, para cá retorna e relata ter sido aprovado em concurso para ser médico do Hospital das Clínicas. Relata uma esquizóide conversa com o governador do estado, o ex-ministro da saúde José Serra, em que o mesmo o parabeniza por ter sido aprovado no concurso e por suas credenciais científicas durante evento cultural.

À audácia, a fortuna ajuda

Quando o médico reclama ao governante que seu salário seria de R$ 1.500,00 ao mês, aproximadamente, e que gastaria três vezes mais que isso para manter seu consultório fechado, Serra o aconselha a largar o HC, pois não seria bom negócio! Isso é que é ser social-democrata (não que petistas, demos ou outros no poder atuem de maneira muito diferente nesse particular). Ao artigo saiu resposta na seção de cartas do secretário de Comunicação do governo estadual, falha e grosseira, além de comentários de outros leitores, incluindo uma que lançou o indefectível ‘se não está contente com todo esse dinheiro, que faça outra coisa na vida’ e por aí afora. Isso não mereceria uma boa abordagem sobre mercado de trabalho médico, condições de trabalho, saúde pública, políticas de saúde, SUS e um amplo etc.? Silêncio novamente na seção especializada do mesmo jornal. Nova bola fora.

Os exemplos reais acima citados mostram que se por um lado houve uma iniciativa na questão saúde no formato mesmo do jornal, ela parece estar postada no lado mais glamurizado da questão e não leva à reflexão de temas importantes, como formação médica e sistema de saúde.

Mas o caderno é novo e sou otimista. Ainda há tempo para mudanças, que só poderiam beneficiar a população como um todo. Afinal, apesar de importantes, os temas ligados à reprodução assistida não podem dominar uma pauta fixa de saúde, certo? Esperemos que, como os romanos, os responsáveis pela Folha concordem que à audácia a fortuna ajuda!

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Médico, São Paulo, SP