Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sem espaço para boas notícias

A imprensa ignorou quase completamente a divulgação do relatório da ONU sobre as metas do milênio. O Brasil conseguiu alcançar com dez anos de antecedência o primeiro e mais importante objetivo do pacto assinado no ano 2000 por 191 países: reduziu à metade o número de cidadãos que vivem em pobreza extrema, com renda per capita inferior a 40 reais por mês. Entre 1999, período inicial de contagem, e 2005, ano-base da mais recente estatística, 4,7 milhões de brasileiros deixaram a miséria, o que significa uma redução de 8,8% para 4,2% na parcela da população vivendo em absoluta precariedade. Segundo o acordo patrocinado pela ONU, essa meta deveria ser atingida em 2015.


Não é apenas uma boa notícia. Trata-se de um dado essencial para o entendimento de questões cruciais para a humanidade neste início de século. A redução da miséria pela metade num país como o Brasil, cuja economia não apresenta no período um desempenho espetacular, produz uma plataforma sólida para o debate sobre estratégias de desenvolvimento. O resultado social e econômico num período tão curto significa um fato histórico que deveria enriquecer as análises sobre a globalização e o futuro do capitalismo.


Desde os anos 1970, com o desmanche do welfare state, a redução da presença do Estado nas economias nacionais, e no final da década seguinte, com o chamado ‘consenso de Washington’, o destino dos 4 bilhões de miseráveis que sobrevivem a duras penas no planeta tem sido um dos eixos dos debates sobre o capitalismo. Desconsiderado o socialismo como alternativa, pelo menos no ambiente apropriado pela mídia, há muito se discute como a expansão do sistema econômico mundial poderia conviver com a permanência da miséria.


‘Ensinar a pescar’ ou ‘dar o peixe’


As estratégias de intervenção direta sobre os grupos sociais excluídos dos benefícios da expansão global da economia têm sido sistematicamente criticadas ou ignoradas pela imprensa. A revolucionária experiência de inclusão econômica da chamada base da pirâmide social, representada pelo Grameen Bank, criado pelo economista paquistanês Muhammad Yunus em 1976, foi ignorada pela imprensa internacional durante vinte anos. Yunus só se tornou conhecido entre os estudiosos de estratégia e administração no final dos anos 90 e alcançou o reconhecimento geral apenas recentemente, quando ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2006.


Os resultados que o Brasil obteve entre 1990 e 2005 são ainda mais espetaculares do que aqueles produzidos pelo Grameen Bank em Bangladesh, o antigo Paquistão Oriental. A promoção social de quase 5 milhões de brasileiros, que deixam a zona da miséria absoluta e se integram entre os cidadãos que têm a oportunidade de participar do desenvolvimento econômico, é produto de políticas sociais intervencionistas, que a mídia em geral condena e qualifica como ‘clientelismo’ ou ‘assistencialismo’. O que o relatório da ONU comprova é que essas políticas funcionam.


Os críticos das políticas sociais de intervenção direta sobre a miséria repetem – e a imprensa os agasalha prazerosamente – que seria melhor ‘ensinar a pescar’ do que ‘dar o peixe’. No entanto, o administrador de empresas Stephen Kanitz, formado pela Universidade Harvard, publicou em 2004 em sua coluna na Veja um estudo demonstrando que, nas entidades ocupadas em ‘ensinar a pescar’, 85% dos recursos financeiros ficam na própria entidade e em seu quadro de operadores, enquanto naquelas que se dedicam a atender diretamente os mais pobres – e por isso mesmo chamadas de assistencialistas – 80% dos recursos vão para quem mais precisa.


Alavancar a auto-estima


Mas não há o que convença a imprensa, de modo geral, a aceitar que as políticas sociais criadas pelo governo Fernando Henrique – e aperfeiçoadas e grandemente ampliadas pelo governo Lula – sejam capazes de produzir mais do que cidadãos acomodados e viciados em viver de doações. Talvez porque a imprensa ainda não tenha assimilado a idéia da impossibilidade do desenvolvimento sem um mínimo de justiça social. Ou por uma razão ainda mais mesquinha: a de que, ao amplificar a boa notícia da redução da miséria, a mídia estaria claramente dizendo aos seus leitores que o governo Lula, afinal, não é tão ruim assim.


Os resultados divulgados na semana passada pelo Centro Internacional de Pobreza da ONU, e anunciados pelo presidente da República, estão diretamente relacionados à estratégia adotada pelo atual governo. Embora as estatísticas apresentadas não permitam fracionar o tempo analisado, ponderando os resultados correspondentes ao período mais recente, uma discussão mais ampla desses dados positivos levaria a opinião pública a avaliar com mais honestidade as políticas sociais ‘assistencialistas’.


Lula sempre disse que sua estratégia de atender diretamente as necessidades dos mais pobres, provendo renda em troca do compromisso de manter as crianças nas escolas, se baseava no pressuposto de que ninguém, em sã consciência, se conforma em viver de esmola. Por sua própria experiência, ele sempre soube que, na maioria dos casos, é preciso prover uma ‘alavancagem’ para que o cidadão excluído adquira a auto-estima suficiente para se agarrar à roda do desenvolvimento social.


Visão antiquada do capitalismo


O relatório da ONU foi acompanhado de análises mostrando que tão importante quanto a redução da pobreza absoluta é a queda da desigualdade. Esse foi outro resultado obtido pelo Brasil e que devia ser celebrado pela sociedade: a parcela de riqueza apropriada pelos 20% mais pobres aumentou de 2,3% para 2,9% em 2005, enquanto a fatia dos 25% mais ricos caiu de 64% para 61%. Claro que ainda convivemos com níveis inaceitáveis de diferenças sociais – e isso a imprensa, unanimemente, tratou de destacar em seus relatos. O que a imprensa escondeu foram observações favoráveis aos programas de atendimento, feitas por especialistas – como o chefe do departamento que estuda Políticas Sociais na Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Neri, que destacou como fatores relevantes para o Brasil antecipar os objetivos de redução da miséria o crescimento econômico, o aumento do salário-mínimo e o Bolsa-Família.


Apenas O Globo publicou essa avaliação. Mesmo assim, deu maior importância ao que ainda falta alcançar para que possamos considerar o Brasil um país socialmente justo. A Folha ignorou completamente o assunto e o Estado de S. Paulo saiu com um título negativista, embora tenha feito um relato basicamente correto do documento da ONU.


No entanto, o que se observa aqui é que o fato recomendaria muito mais. Não se trata apenas da aparente ojeriza da imprensa em celebrar acontecimentos positivos. Escorre nas entrelinhas dessas escolhas editoriais o apego doentio da mídia a uma visão antiquada do capitalismo, ainda fundada no tal ‘consenso de Washington’, cujos fundamentos estão mais do que corroídos, não apenas pelas crises sucessivas da economia global, mas principalmente por seu fracasso em criar uma sociedade aceitável.


Políticas de intervenção direta sobre as carências sociais dão resultado, sim. Se a realidade contraria as teorias econômicas conservadoras travestidas de liberalismo, essa realidade precisa estar nas manchetes.

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Jornalista