Muito depois da meia-noite de quinta-feira (30/6), a mulher loira, de terno azul, e sua colega morena, de camiseta branca, bem que mereceriam um destaque da imprensa feminina. Mas, durante a São Paulo Fashion Week, dificilmente mulheres vestidas com roupas sóbrias, cabelos desarrumados, maquilagem desfeita – ou inexistente – entrariam nas páginas que a imprensa dedicou às mulheres neste período.
Nestas páginas o espaço é reservado apenas às muito jovens – e muito lindas –, cabelos rastafari e maquilagem perfeita, ou melhor, as top models, que enriquecem o noticiário de moda, feito por mulheres… para o público feminino. Delas ficamos sabendo de tudo: a dieta, os cosméticos preferidos, quantas horas dormem por noite e, é claro, o tempo que maquiladores e cabeleireiros levam para montar o look que desaparece em poucos minutos, quando começa o próximo desfile.
Da deputada Denise Frossard ou da senadora Heloísa Helena – as personagens femininas da noite de quinta-feira – só temos notícias nas páginas de política, onde são tratadas como seus colegas: aparecem se fizerem notícia. O erro é que essas mulheres dificilmente ganham destaque onde deveriam ser presença constante: as revistas femininas.
Prioridade
Até parece, ao examinar as revistas especializadas, que as mulheres só se preocupam com o comprimento da saia, o formato da bermuda, a leveza ou a transparência dos tecidos que vão ser moda no próximo verão. Não se leva em conta a informação que a juíza Denise Frossard divulgou, na transmissão de mais uma sessão da CPI dos Correios, quinta-feira, bem depois da meia-noite: um grupo de mulheres tinha enviado e-mail dizendo que continuassem o bom trabalho, porque havia mulheres, muitas mulheres, assistindo. Mulheres preocupadas – acredite a imprensa feminina ou não – com o futuro do país, em discussão no Congresso.
É como se as mulheres brasileiras se dividissem em duas espécies: as sérias senhoras que chegam ao Congresso e procuram justificar os votos recebidos com uma atuação firme – sem tempo para bobagens como roupa da moda, maquilagem ou corte de cabelo especial, e as mulheres retratadas na mídia – loiras, lindas e fúteis, que explicam seu sucesso pessoal com um discurso decorado, como o da modelo que justificou o fato de ter vencido nas passarelas no exterior por ‘chegar no horário e cumprir compromissos com profissionalismo’. Nada errado em dar espaço às modelos, aos estilistas, à moda. Se é notícia, merece registro. Estranho é falar da Fashion Week como se não fosse um grande negócio, cada vez mais voltado para as vendas no exterior, onde o que importa é trazer dólares de volta. Pena que a mídia não aproveite a oportunidade para mostrar que por trás dos efeitos especiais, das mulheres e homens bonitos, existe toda uma máquina voltada para o business. Máquina, aliás, que tem entre seus condutores um grande número de mulheres.
Ao acompanhar o noticiário sobre a Fashion Week, percebemos, mais uma vez, como a mídia se deslumbra com o que considera chique, como aconteceu com a inauguração da Daslu, classificada como exagero até por uma das mais destacadas figuras do assim chamado mundo fashion, a dona da Tecelagem Santa Constancia, Costanza Pascolato. É deprimente ver a apresentadora do Canal GNT, encarregada de acompanhar os bastidores de um desfile, falar da sua felicidade de voltar aos camarins (ela contou que já foi modelo) e de como os modelos têm mordomias (massagem, tempo para entrar no palco etc.) desconhecidas no seu tempo. Informação importante mesmo, nada.
Susto
Pior ainda acompanhar a entrevista com a estilista Clo Orozco (da Huis Clos). Vestida com sobriedade, a estilista bem que tentou falar do negócio que dirige, explicando, numa linguagem nada fashion, que compra tecidos no exterior e procura dar prioridade ao conforto em suas roupas. A entrevistadora – uma especialista em moda – parecia interessada apenas na faixa amarela usada numa das roupas.
Dava para notar a pouca familiaridade da entrevistadora com a linguagem da estilista que, em nenhum momento, apelou para o tipo de frase com que os jornalistas de moda preferem se expressar. Por exemplo: ‘O volume godê aparece mais nas saias, com aplicação de flores’; ‘O resultado não é retrô, e sim delicado’; ‘O revival dos anos 70 e do flower power é inspiração de muitos estilistas’; ‘As calças apostam na modelagem justa’; ‘Tingimentos e lavagens pontuam também nos tie-dyes de vestidos mais soltos – mas sensuais – e camisetas podrinhas, como pedem esses tempos’. E não há editor que consiga transformar essa linguagem misteriosa em português inteligível por simples mortais, que devem ser, salvo engano, os leitores de jornais e revistas.
Mas, talvez o noticiário especializado nem seja o pior. Afinal, estão falando de um evento, que se resume a sete dias. Mais distante da realidade ainda é a matéria publicada domingo (O Estado de S.Paulo): ‘Roupa velha, sim, mas na moda’.
O leitor, ou melhor, a leitora, acredita que afinal vai conseguir ser chique com o que tem em casa. E certamente leva um susto ao perceber o quanto é excluída, ao descobrir as velharias de que o jornal está falando: um mantô de lã camelo da Max Mara, um vestido Huis Clos, um vestido da G (de musseline branca e veludo preto), peças de Chanel e Versace, um casaco de couro e um pulôver de cashmere, comprados em Nova York. A verdade é que, ao ler as páginas dedicadas às mulheres, temos a certeza de que existem pelo menos dois tipos nesse país: as mulheres do mundo fashion, que a imprensa adora, e a grande maioria que não tem tempo, e muito menos dinheiro, para ser chique. Mulheres como a deputada, a senadora e as milhões de outras que são donas-de-casa, professoras, pesquisadoras, secretárias – e até jornalistas – e que não recebem o destaque que mereciam, ao menos nas revistas femininas.
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Jornalista