Para o iG, Pânico 4 trocou o terror pela comédia (ver aqui); o Omelete preferiu enfatizar as ‘novas regras’ da trama (aqui); O Globo deu mais atenção às participações especiais no filme do que ao próprio filme (aqui).
Como de praxe, a crítica especializada quase se limitou a fazer propaganda do filme em cartaz. Este filme parece um filme de terror, parece ser um filme de comédia, parece ser um filme sobre outros filmes, mas na verdade poderia ser interpretado como um excelente exemplo de realismo fantástico.
Os dois vilões matam as vítimas durante a comemoração do massacre. Eles filmam o que fizeram e pretendem colocar tudo na internet para poder desfrutar da condição de sobreviventes e vítimas privilegiadas (exatamente como a heroína da trilogia, que neste quarto filme é escritora e faz sucesso relatando suas experiências passadas). Um dos vilões é morto pela parceira, a qual já havia matado seus amigos, sua mãe e, aparentemente, sua prima (a heroína da trilogia). A justificação da vilã é exemplar. Ela diz que não precisa nem amigos, nem parentes, nem parceiros. Ela quer apenas fãs. Tudo é disposto de maneira a que os crimes sejam atribuídos a um inocente e a vilã sobrevivente, candidata a heroína, simula ter sido atacada numa sequência em que a violência é bastante realista.
‘A afirmação da vida humana como aparência’
Se acabasse no momento em que a mídia reconhece a vilã como vítima, este seria um dos melhores filmes da década. Um exemplo perfeito de realismo fantástico, uma transposição para a ficção e o cinema do cotidiano esquizofrênico da sociedade norte-americana na atualidade. A celebração pública da violência gratuita se tornou uma constante durante as guerras em curso. Soldados americanos postam na internet fotos de suas vítimas, divulgam vídeos em que suspeitos são despedaçados a tiros de metralhadora de grosso calibre (o ex-soldado norte-americano que me indicou originalmente este vídeo comemorava o fato do cachorro não ter sido morto).
O que dizer de um país que critica seus adversários porque eles violam direitos humanos mas segue torturando de maneira insidiosa e diária Bradley Manning sem lhe conceder direito a defensor, a uma ação judicial e a uma condenação válida proferida por juiz isento? Isto para não citar outros exemplos igualmente infames. Tudo bem considerado, no presente não é difícil demonstrar ou concluir que os EUA afundaram sob o peso das contradições criadas pelas guerras imperiais iniciadas por Bush Jr. e tocadas burocraticamente por Obama.
A infâmia é companheira inseparável do desejo de reconhecimento rápido e sucesso sem esforço. Na ‘sociedade do espetáculo’ não há lugar para moral ou para a ética. Isto já havia sido percebido por Guy Debord, que admite expressamente a possibilidade da critica à aparência:
‘O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências organizadas socialmente, que devem, elas próprias, serem reconhecidas na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível.’
Realidade e ficção
É mais ou menos isto que o filme em questão faz. Pânico 4 tematiza a infâmia do espetáculo, da gratuidade da violência, da inexistência de ética, de amor ou de amizade entre os personagens. E isto permite que os espectadores façam uma reflexão. Afinal, tudo isto já faz parte do cotidiano norte-americano na atualidade. As brutalidades praticadas no Iraque e no Afeganistão, auto-exaltadas pelos soldados norte-americanos através da divulgação de fotos e vídeos, são compartilhadas por toda sociedade, que consome avidamente as imagens infames através da televisão e da internet (mesmo os críticos da guerra são obrigados a participar do espetáculo vendo a brutalidade dos soldados).
A crueldade, a morte e o desejo doentio de sucesso e visibilidade através da internet fazem parte da sociedade norte-americana. A notoriedade fácil decorrente da brutalização desejada pela vilã do filme é um espetáculo real nos EUA. Pânico 4 parece um filme despretensioso, mas é muito bom, se for visto com o devido cuidado.
O filme, entretanto, não acaba como poderia. Os criadores de Pânico 4 fizeram uma concessão ao ‘modo norte-americano de fazer filmes’ ao protelar o final para depois do momento em que a vilã se torna heroína com ajuda da mídia. Num pós-final, sua trama maquiavélica é descoberta e ela é morta no momento em que a mídia se prepara para consolidar sua imagem pública positiva. Um romantismo fácil domina este pós-final do filme. A vitória do bem contra o mal é assegurada. Salva das garras da arte, a excepcionalidade norte-americana foi despudoradamente reafirmada. O espetáculo tem que continuar? Os cinéfilos não podem perceber a realidade através da ficção neste momento em que realidade e ficção são a mesma coisa?
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Advogado, Osasco, SP