Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sequestro eleitoral

A maior das dívidas eleitorais não é aquela a quem cabe julgar, já consagrados os vencedores do pleito, os Tribunais de Contas. Tampouco é a que está nas mãos dos costumeiros e pomposos doadores de campanha que, pasmados pela ambiguidade, chegam mesmo a fazer donativos a campanhas oponentes, espreitando qualquer resultado possível. A maior das dívidas eleitorais, entretanto, é aquela que o povo tem para com seus representantes.

Ao contrário do que possa parecer num exame apressado, são os governantes e demais ocupantes de cargos públicos que tomam do povo sua confiança e credibilidade, e não vice-versa. Logo que acaba o período eleitoral, um vazio intenso assola a sociedade. Esse vazio é a expressão do desejo e da esperança de cada um que foi tomada pelos candidatos e transmitida agora através das urnas eletrônicas que se instalam por todo o país, coletando o voto das periferias e dos bairros nobres, dos confins setentrionais e meridionais e também das grandes capitais, no que é chamado por alguns de ‘a mais legítima festa democrática’.

Ruim com ele, pior sem ele

A definição de democracia como o mero direito ao voto, apesar de muito encontrada na cobertura jornalística nestes dias, é praticamente um sequestro que se pratica nas intenções individuais. É como se ao cidadão fosse dito: ‘Muito bem, você já fez sua parte e mostrou no que crê, agora nós daremos um jeito nisso (de acordo com a nossa própria agenda de interesses, é claro), você não precisa mais se preocupar com isso. Volte daqui a quatro anos.’ Assim, sequestrado, o cidadão guarda seu comprovante de votação e pode assistir a máquina burocrática do Estado recompor-se para, entre muitas outras coisas, passar a preocupar-se em como se fixar no poder ou, no caso dos derrotados, equipar-se em novas estratégias mais eficazes para tentar chegar lá mais uma vez.

Sem quem se ofereça a pagar pelo resgate de sua credibilidade e sem nenhuma instituição formal para a qual se possa reclamar a titularidade de sua dívida, o cidadão comum já pode vagar tranquilamente mais uma vez, sabendo-se refém e impotente diante de sua própria impotência delegada. Ao longo destes quatro anos, farão com que frequentes eventos fundamentais que chegarão a sobrepor-se no calendário, lhe dirão que ocupe espaços participativos nos quais o Estado tem sempre a palavra final ou, quando não a tem, faz desses ínfimos momentos participativos exatamente o que bem entende, de acordo com as influências mais influentes e, em temas mais críticos, como aborto, ensino laico, homossexualidade, reforma agrária e ações afirmativas, por exemplo, os muxoxos costumeiros através dos quais vem conduzindo a sociedade brasileira desde sua redemocratização.

Mas, ao menos, há o direito ao voto. Um direito obrigatório, é verdade, e que se fosse opcional talvez mostrasse o único possível verdadeiro raio X da sociedade brasileira. Ruim com ele, muito pior sem ele. Mais importante que o voto só mesmo o Twitter porque, afinal, de que vale ter um candidato em segredo? Muito provavelmente no futuro, com a democracia ‘aperfeiçoada’, a urna eletrônica terá conexão até mesmo com as redes sociais, dispensando definitivamente a duplicação de esforços. Ou então as redes sociais poderiam substituir a urna eletrônica. Bastaria verificar o candidato mais mencionado e pronto, sem falar na possibilidade do retorno do voto nulo, onde os inconformados sempre puderam exercer, na época do voto em papel, o seu pleno direito à contrariedade.

Retornar à vida comum

Agora, que está acabando o período de escândalos, pelo menos o período em que oportunamente eles vêm a público, que está terminando finalmente o período de promessas, cartas coletivas de apoio a A ou B, marketing político, promessas, jingles enfadonhos, compromissos esquivos, declarações medievais e tantas outras espécies de fenômenos típicos do período eleitoral, o sopro da esperança voltará ao seu estado de sempre, o de permanente adiamento. A vida prática da população comum continuará a ocupar as páginas do que em muitos jornais chama-se ‘Geral’ e também da polícia, não se pode negar isso. Seus sonhos serão transferidos para a crônica esportiva e a antecipação dos capítulos das telenovelas.

Profecias à parte, os exemplos acima referem-se ao passado, não ao futuro, e é muito provável que ele torne mesmo a repetir-se. Um déjà-vu sinistro que revelará mais uma vez a mesmice e a perpétua imobilidade social brasileira. No último momento, provavelmente ainda restará dúvida em todas as mentes. Afinal tentaram convencê-lo de que esta eleição, como nunca antes, se trata de algo como um cara ou coroa e que a moeda em questão tem duas faces, bem e mal. Diante da perspectiva de continuidade do atual governo ou diante da opção contrária, os dias que restam deveriam ser decisivos para algo mais que o resultado final, mas é tolice pensar nisso, numa hora dessas.

Por sorte, você já sabe que foi sequestrado. Só falta o colocarem de encosto à parede.

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Coordenador da revista digital Inclusive: inclusão e cidadania e autor de Morphopolis