Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Será que vai ter festa?

Em 2008, a imprensa no Brasil completa 200 anos. Com sua vocação já bem delineada como instrumento de poder nos países europeus, nasceu aqui pelas mãos de Hipólito da Costa e seu Correio Braziliense. O jornal vinha clandestino, de Londres, para falar à elite de letrados da época sobre entraves que impediam o desenvolvimento político e social do Brasil, entre eles a escravidão, cuja abolição também é lembrada após 120 anos com solenidades e comemorações.

Antes de lembrar essa data, é importante perguntar o que há para comemorar. A imprensa, hoje, principalmente a formada por grandes jornais, continua restrita a uma elite econômica que é capaz de comprar os exemplares ou pagar por um serviço de conexão com a internet. O perfil desse público é claramente refletido pelas pautas que orientam os esforços editoriais dos jornais e, no mínimo, mostra que ele vê o mundo girar unicamente em volta do seu umbigo.

Experimentamos hoje um fenômeno midiático no qual um cidadão, mesmo o totalmente desinteressado dos noticiários, comenta e é capaz de dar detalhes sobre o mais recente espetáculo super-explorado pela grande imprensa. O nome do caso está em inúmeros cabeçalhos das páginas dos jornais, com direito a ser escrito com inicial maiúscula: o Caso Isabella. Recentemente, aqui em Brasília, uma repercussão de proporções semelhantes, só que em âmbito local, foi dada ao caso de uma outra Isabella, adolescente moradora de área nobre da cidade que foi brutalmente assassinada em condições misteriosas. O empenho da mídia na apuração desses crimes, principalmente em relação ao cometido contra a Isabella de São Paulo – este, transformado em circo dos horrores – precisa nos fazer pensar sobre a imaturidade intelectual da nossa sociedade, amesquinhada a um ponto tal que se compraz com os detalhes sinistros de um acontecimento trágico.

Aumentando a audiência

O Distrito Federal reflete o Brasil de uma forma bem clara. Tem, a poucos quilômetros da próspera Brasília, algumas cidades que chegam a equiparar-se, em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), aos países mais pobres da África central. Ali, ocorrem violências diárias com meninos e meninas de todas as idades. A grande imprensa, então, decide, quando muito, que a morte ou os crimes de agressão cometidos contra essas crianças esquecidas merece uma breve nota de ocorrência ou uma pequena citação no meio da matéria sobre a localidade. Fica clara uma nítida inclinação dos grandes meios de comunicação em aprofundar a investigação de crimes hediondos apenas quando estes acontecem próximos da esfera social à qual seus dirigentes e profissionais pertencem. E também que, atendendo aos pedidos do público economicamente qualificado, podem sair lucrando com o aumento da receita de publicidade baseado no crescimento da audiência.

Ora, ninguém pode ser ingênuo o bastante para justificar a cobertura mais que excessiva do caso da menina morta em São Paulo sob o argumento de que a exposição pública dos fatos é importante para ‘se fazer justiça’. Parece que o grande objetivo dos veículos de comunicação é fomentar as discussões que não levam a lugar algum (do tipo que um telejornal, ao vivo, noticiou: chove em frente à delegacia em que o pai e a madrasta da menina Isabella teriam de comparecer para depoimento!) e publicar mais e mais do mesmo. Assim, continua a vender exemplares e a aumentar a audiência: o que torna ainda mais tétrica a face desse evento.

Imprensa do lado do branco

O Brasil tem um sério problema de violência doméstica que atinge em especial as crianças de baixa renda, muitas com a mesma idade da menina que virou estrela do macabro esquema de exploração da morte veiculado pela mídia. São os pais que têm problemas com drogas, com a falta de emprego, são carentes de qualquer estrutura social e acabam descontando a revolta por essa situação nos seus filhos. São milhares deles, entre os que morrem, os que têm a vida abreviada pela falta de perspectivas e aqueles que permanecem marginalizados para sempre. E como se noticia ou dá visibilidade a essas tristes realidades? Às vezes, com uma matéria especial, não muito mais que isso. Ou quando é divulgado o resultado de alguma pesquisa ou estudo específico. Será que é porque acontecerem barbaridades do tipo com crianças dessa classe social é comum demais, já deixou de ser notícia relevante para os jornais? Ou porque o público que os lê não quer saber o que aconteceu com aquela pessoa que mora a quilômetros da sua casa e não freqüenta a escola dos seus filhos e, portanto, nunca teria a chance de cruzar com ele ou sua família?

Sabe-se que a maior parte das vítimas de crimes, dos que têm as piores condições de vida e que sofrem as mais diversas formas de exploração, é formada por negros e pardos. A imprensa, que deveria ser plural e democrática, ainda está do lado branco do Brasil, dos ascendentes ibéricos, estes mesmos que desenvolveram o tráfico de seres humanos para enriquecerem às custas do suor alheio.

Comemoração para quando?

O estudo ‘Desigualdades raciais, racismo e políticas: 120 anos após a abolição’ revela que os negros ocupados recebem 53% menos que brancos na mesma situação. Outra fonte [Síntese dos Indicadores Sociais 2007 – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira com base na Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (Pnad) e Ibope com o Instituto Ethos] mostra que 69,4% dos analfabetos do país são negros e que apenas 3,5% dos cargos de chefia nas maiores companhias brasileiras são ocupadas por pretos; já as mulheres negras não representam nem 0,5% nessa conta.

No ano em que são comemorados o nascimento da imprensa brasileira e a abolição de um regime desumano de exploração, infelizmente é impossível falar em imprensa livre. Enquanto ela continuar atendendo aos anseios apenas de uma parcela pouco representativa da realidade cultural e social brasileira, não terá atingido sua capacidade transformadora latente. Seria vital que o peso que o jornal impresso ainda tem fosse usado para quebrar esse grilhão.

O Instituto Brasileiro de Economia Aplicada (Ipea) faz projeção de que somente daqui a 32 anos haverá uma equiparação dos salários entre brancos e negros. Então, talvez a verdadeira comemoração da emancipação dos descendentes dos escravos deva ser feita em 2040, apenas. Já aquela que diz respeito ao advento da imprensa livre e democrática, liberta de preconceitos, não arrisco dizer quando.

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Publicitário, Brasília, DF