Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sharia à brasileira

Toda intolerância, como o racismo, o bullying (discriminação que ocorre nas escolas, cuja tradução mais apropriada seria ‘oprimir’), a misoginia, a homofobia, é baseada no dogma da superioridade de uma classe de indivíduos sobre outra, ou no sentimento de ameaça que despertam integrantes do clube dos desiguais; e na negação da mais óbvia característica humana: a diversidade.

O açoitamento moral infligido por um grupo de alunos da universidade Uniban a Geisy Villa Nova Arruda, 20, parece não se encaixar em nenhuma das descrições de desvio comportamental acima, mas não seria de se descartar uma espécie de bullying reverso, porque, ao contrário das tradicionais vítimas da opressão escolar, a moça é bonita, e assume sua auto-estima vestindo-se com roupas ousadas – mas não indecentes – que poucas podem, ou se permitem, usar.

Isso causa despeito, sentimento de ameaça ou inveja em algumas colegas, e de rejeição, talvez, nos rapazes. É possível mesmo que o desatino grupal tenha sido detonado por algum mancebo insuficientemente versado no exercício da frustração – afinal, Geisy não é nenhuma novata na faculdade. Ou porque ela atua de maneira diferente do comportamento da maioria – parte da qual provavelmente adoraria poder agir e se vestir como ela.

Uma obra-prima de hipocrisia

A sharia, lei islâmica, não está baseada nas verdades do Alcorão, mas, sim, em interpretações propositalmente distorcidas dos seus versos. Embora possa assim parecer, ela não é uma lei religiosa, mas política, discriminatória. Em Banda Aceh, Indonésia, a Polícia Moral da sharia faz sua ronda diária, intimando ou prendendo aqueles que não se portam como manda a lei dos costumes.

Não é o que a nossa moderna sociedade ocidental faz, mais sutilmente, no aniversário dos vinte anos da queda do Muro de Berlim? Não foi um Muro da Vergonha que a molecada, com o deplorável aval da direção da Uniban – que decidiu expulsá-la –, ergueu em torno de Geisy? Sim, como tantos já disseram sobre o episódio, transformou-se a vítima em infratora. Alguém denuncia um crime? Puna-se o delator!

Hoje [10/11], numa emenda ao medonho soneto, a direção da Uniban publicou uma nota intitulada ‘Responsabilidade Educacional’. O texto é uma obra-prima de hipocrisia, um solene desprezo à inteligência alheia. Citando os artigos 207 e 216 da Constituição, que não têm relação com os fatos, ela diz ter apurado que a aluna ‘tem frequentado a escola em trajes inadequados’ – onde estarão em seu estatuto, os parâmetros que definem essa adequabilidade? – ‘e optou por um percurso maior do que o habitual’ – interessante, será que a faculdade controla com tal minúcia o trajeto diário de cada aluno para afirmar isso?

Como revogar o sofrimento?

Incorporando o figurino de vítima, a Uniban disse ‘estranhar o comportamento da mídia’ (internacional, inclusive, no caso) que, ‘mais uma vez’, ‘perde a oportunidade de contribuir para um debate sério e equilibrado sobre temas fundamentais como ética, juventude e universidade’.

Ética é respeitar a diversidade, é ensinar a tolerância, repudiar a discriminação; dizer a seus alunos que aquele episódio foi uma aula magna do mais puro totalitarismo. À noite, o reitor da instituição, generoso, revogou a expulsão de Geisy. Infelizmente, falta ao magnífico o poder de revogar, também, o sofrimento da moça.

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Administrador de empresas, São Paulo, SP