A Universidade Federal do Piauí (UFPI), situada em um dos mais pobres estados da federação brasileira, está imersa em um mar de improbidades, mas nada ou quase nada é noticiado. Pelo contrário: sob um fino e frágil verniz grandiloquente que reduz a instituição a um ‘canteiro de obras’, a mídia piauiense se acumplicia com um dos reitorados mais truculentos da história da UFPI. O comportamento da mídia piauiense no que diz respeito às práticas de improbidade administrativa do reitor Luís Júnior evoca os piores tempos do regime militar, quando as notícias relativas aos desmandos dos donos do poder não eram divulgadas. Se divulgadas, minimizadas, com uma reserva maior de tempo para o agressor da lei. Ou ainda, a conspícua oferta da última palavra ao usufrutuário do poder.
De modo sumário, convém historiar os atos de improbidade e a sua cronologia a fim de compreender o silêncio conivente da mídia piauiense. Esquematicamente, foram formalizados, junto ao Ministério Público Federal do Piauí, os seguintes processos contra o reitor da UFPI, Luís de Sousa Santos Jr.:
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Processo Administrativo n.º 1.27.000.000221/2008–44, referente ao uso indevido do cartão corporativo e à dispensa indevida de licitação, na contratação de serviços de publicidade e propaganda, com base em constatações da Controladoria Geral da União. Com base nas constatações da CGU o MPF, através do Chefe da Procuradoria Federal no Piauí, Kelston Lages, formulou denúncia, integralmente acatada, à Justiça Federal. O processo 2008.40.00.007563-2 tramita na primeira Vara Federal, em Teresina, e pode resultar na perda do cargo e na cassação dos direitos políticos por parte do reitor;**
Processo Administrativo referente à contratação de parentes e pagamento duplicado de servidores por meio de bolsas da educação à distância;**
Processo Administrativo nº 1.27.000.000034/2010, concernente a desvio de finalidade da fundação de apoio, Fadex, para pagamento de concursos a cargo da UFPI, enriquecimento ilícito em descumprimento da legislação federal atinente a encargos de cursos e concursos e prática de nepotismo para contratação de coordenadores e fiscais de concursos.Jornalistas impedidos de publicar
A mídia local – tanto a convencional, impressa, como a mídia de rádio e TV, quanto a mídia virtual – mal divulga as notícias referentes às práticas de improbidade administrativa do reitor da UFPI, o que constitui grave prejuízo para a vivência cidadã dos piauienses e mesmo dos brasileiros.
Quanto à mídia televisiva e radiofônica, a respeito das quais há exigência constitucional de priorizar a informação, somente após insistente demanda foram-me proporcionadas três entrevistas. A primeira diz respeito à entrevista concedida à filiada local da Rede Globo, a TV Clube, em uma externa. Cumpre relatar que a entrevista minimizou a gravidade das denúncias e preservou, indevidamente, a imagem do reitor, o principal responsável pelas práticas de improbidade administrativa. Na entrevista, disponível no YouTube, o nome do reitor não é sequer citado e os valores mencionados distam grandemente dos valores prováveis de enriquecimento ilícito contidos em minha denúncia. Essa entrevista foi obtida por obra de minha persistência junto a diversos jornalistas.
A outra oportunidade foi proporcionada pela filiada do sistema Bandeirantes, a TV Meio Norte, na qual o seu âncora, apresentador Silas Freire, fez questão de dizer que participei do programa por minha insistência. Revelou, portanto, nenhum interesse em investigar, de modo isento, o inteiro teor de minha denúncia. [A denúncia foi encaminhada para os seguintes órgãos de controle: Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União, Delegacia da Receita Federal e Superintendência da Polícia Federal.] A terceira e última entrevista televisiva foi concedida à TV Antares, um canal governamental, cuja audiência, infelizmente, não atinge o grande público local.
Quanto à mídia impressa, a despeito de suas peculiaridades de operação, não houve interesse algum em publicar absolutamente nada. [Não se desconhece que, nos dias correntes, os jornais impressos têm uma demanda decrescente em razão da concorrência de outras fontes de informação midiática. Isso gera uma pressão crescente por anunciantes que garantam a manutenção da mídia impressa. Por outras palavras, a mídia impressa torna-se, principalmente em centros de menor complexidade socioeconômica, vulnerável, em uma escala mais acentuada, à manipulação do poder econômico. É verdade que a imprensa não pode prescindir de uma concentração de capital, vez que sua estruturação demanda investimentos elevados e a sua manutenção, em grande medida, depende do faturamento do jornal impresso. Porém, isso não pode implicar o sacrifício do direito do cidadão à informação, e à informação de qualidade.]
Isso não diz respeito apenas à minha denúncia, mas às outras práticas de improbidade que têm marcado a gestão do atual reitor. A bem da verdade, apenas o recém lançado semanário Tribuna do Piauí tem dado ampla cobertura às graves denúncias que pesam contra o reitor da UFPI [uma simples busca na internet permite a comprovação cabal do que ora se declara, vez que nenhum dos três grandes jornais impressos locais e seus correlatos virtuais, Meio-Norte, O Dia e Diário do Povo, divulgou nada a respeito das graves denúncias que se transformaram em matéria para a formação de processos administrativos pelo MPF-PI]. O problema parece estar relacionado com os detentores das concessões, que não autorizam seus jornalistas a divulgar o que tem acontecido no interior da federal local. Há, inclusive, confessas declarações de jornalistas, em caráter reservado, de que estão impedidos de publicar o que quer que seja contrário ao reitor da UFPI.
Suspeitas de denúncias blindadas
Quanto à mídia virtual, tem havido maior divulgação que nos demais veículos de comunicação. No entanto, continua a haver disparidade de tratamento. Por exemplo, a matéria referente à minha denúncia tem como manchete ‘Reitor da UFPI acusado de suposto desvio de R$ 1 milhão. Polêmica bem no dia do anúncio do `PSIU´: denúncia feita ao MP e ele já respondeu, à altura’. Ora, a manchete enviesa completamente a denúncia. Em primeiro lugar porque indica expressamente que o reitor teria esclarecido o sucedido, o que não aconteceu em nenhuma medida; em segundo lugar porque a resposta do reitor, ao longo da matéria, não consubstancia nenhum esclarecimento específico a respeito das denúncias. Finalmente, a matéria é desfechada com uma série de acusações do reitor contra mim sem que haja nenhuma exigência de comprovação documental, o que representa uma flagrante ofensa ao jornalismo investigativo. Não houve sequer requisição de documentos comprobatórios para a apuração da verdade. Além disso, nada há.
Fossem denúncias constituídas por objetivos meramente detratores, a mídia impressa local estaria coberta de razão. Todavia, conforme se pode comprovar com consulta à documentação encaminhada aos órgãos federais de controle no Piauí em vários processos, trata-se de irregularidades graves entre as quais se destaca a do processo referente ao uso abusivo do cartão corporativo, em que o Ministério Público Federal requisita a perda do mandato e a cassação dos direitos políticos por cinco anos.
Cumpre dizer que o aparente desinteresse da mídia local em informar sobre matérias de evidente interesse social, em um estado no qual a universidade federal responde pelo terceiro maior orçamento – perdendo tão-somente para os orçamentos dos governos do estado do Piauí e da prefeitura de Teresina – indicia uma relação promíscua das elites econômicas com o reitor em exercício. Por outras palavras, significa dizer que há fundadas suspeitas de que o poder econômico tem interferido a blindar as denúncias, a omitir da população piauiense seu direito, assegurado constitucionalmente, à informação.
Práticas patrimonialistas
Não incorreriam em denuncismo caso averiguassem a procedência das informações a veicular as versões das partes litigantes. Porém, nada disso é feito. Reina o total silêncio ou são publicadas, em sua esmagadora maioria, apenas as notícias de caráter laudatório. Assim, para as ações e eventos referentes a inaugurações, convênios celebrados com o estado, há uma ampla cobertura [a mídia local, vale dizer, tem estreita relação com a universidade, vez que esta última é uma de suas principais anunciantes. Por outras palavras, a UFPI mantém uma relação econômica com a mídia televisiva, radiofônica, impressa e virtual local capaz de adulterar-lhe o ofício dos jornalistas de investigar de modo independente]. Assim, o papel reservada à imprensa, de exercer controle sobre as instituições, tem sido absolutamente descaracterizado em terras piauienses.
Houve ainda a barganha que produziu um prejuízo grande à difusão isenta da informação no Piauí quando o reitor negociou o canal de TV destinado à universidade com a Assembleia Legislativa local. Sabidamente, um canal sob o controle de parlamentares, principalmente em um estado controlado por oligarquias, tal como o Piauí, cerceia a livre manifestação da opinião, necessária para o incremento do estado democrático de Direito.
O comportamento da mídia local, qualquer que seja o seu suporte, tem promovido uma blindagem em torno do reitor. Curiosamente, a Folha de S.Paulo deu maior repercussão à corrupção na UFPI do que qualquer periódico piauiense, à exceção, já registrada, do recém-criado semanário Tribuna do Piauí. Esse comportamento colide frontalmente com o artigo 220 da Constituição cujo texto reclama a liberdade de manifestação de pensamento sem qualquer restrição, resguardados os direitos e garantias fundamentais cabidos a qualquer pessoa natural ou jurídica. Fere, também, o papel constitucional atribuído às concessionárias de televisão, rádio e jornais, conforme prescreve o artigo 221 da Constituição Federal, cujo texto codifica como princípios reguladores das emissoras de rádio e televisão a preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Ora, negar à sociedade piauiense, habitante do estado cuja relação entre o PIB e a renda per capita ocupa a última posição em nossa federação, informações concernentes ao mau uso de recursos públicos representa a transformação da mídia em mero meio de propaganda institucional e de promoção pessoal dos detentores do poder.
Face ao exposto, somente a pressão da mídia nacional pode arejar o ambiente informacional piauiense com a divulgação das práticas patrimonialistas do reitor da UFPI. É possível que, em havendo tal pressão, a mídia piauiense seja coagida a cumprir o papel que se espera dos meios de comunicação de massa.
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Professor da Universidade Federal do Piauí