Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Silêncio revelador sobre acordo com Vaticano

A imprensa nacional é extremamente condescendente com a religião. Talvez seja o respeito aos seus eleitores, digo, leitores. Talvez, usando uma linguagem da área, seja o temor em revelar verdades e, deste modo, atrair a ira dos devotos. Muito provavelmente é a mistura dos dois.

O que me leva a essa reflexão é o fato do Congresso Nacional estar sacramentando um acordo do Brasil com a Igreja Católica e ninguém dar bola pra isso. O acordo, para dizer o mínimo, é um retrocesso político – no fundo, coloca o catolicismo como religião oficial do Brasil. Somente a mídia não-católica deu espaço para o acontecimento.

Sem querer, abri uma discussão: existe uma mídia católica e uma não-católica no Brasil? Evidente que sim. Os católicos que acompanharam pela TV Globo a visita do Papa Bento 16 ao Brasil, em maio de 2007, ficaram muito felizes – a emissora cobriu a visita de um santo; Bento 16 não era um homem normal. Aquilo não foi cobertura, foi catequese. A CNBB (que tem fama de ser da esquerda), que escolheu a Globo (que é porta-voz da direita) por razões políticas e religiosas, também deve ter ficado satisfeita.

A Globo, é bom frisar, tem demonstrado uma simpatia católica há muito tempo. O momento mais esclarecedor foi quando da escolha do novo papa. Para lá foi enviado William Bonner e sua equipe de fiéis, digo, de produção. Aos domingos, a Globo transmite a missa do padre pop Marcelo Rossi.

Não querem passar por hereges

O posicionamento religioso da mídia é complicado para o jornalismo. Quando se troca a razão pela fé, o jornalismo morre. Ora a visita do papa era motivo para revelar a história da Igreja Católica, como ela se construiu, seus erros e acertos. As informações trazidas pelos repórteres, porém, pareciam todas nascidas na paróquia da esquina, ou no Vaticano, o que dá no mesmo.

Mas isso é passado.

O que temos agora é um fato novo: o acordo que não foi assinado quando da visita de Bento 16 ao Brasil agora tramita na Câmara dos Deputados. Na semana passada, ele foi aprovado na Comissão de Relações Exteriores. O documento estabelece privilégios para a Igreja Católica em termos de liberdade de culto, preservação de igrejas, isenções fiscais, não obrigações trabalhistas com os padres, concessão de vistos para missionários, propriedade de espaços urbanos, ensino de religião nas escolas.

Tudo isso afeta diretamente a vida das pessoas, e não apenas os católicos, mas a imprensa fez de conta que não é com ela. A imprensa católica, por razões óbvias; a não-católica, por medo. Quem ousaria questionar um acordo do Brasil com o Vaticano?

A mídia evangélica certamente ainda encara a Igreja Católica. O problema é que o maior ícone dos evangélicos é moralmente questionável.

O fato é que tem uma pauta tentando entrar nas redações: a Igreja Católica, seus atos, sua história, seu poder. É que os jornais não permitem – não querem passar por hereges.

Uma doutrina medieval

A cobertura do caso do bispo do Recife – aquele que defendeu o estuprador e excomungou o médico que promoveu o aborto – é exceção porque se tratou, de fato, de uma aberração. Tanto que até Luciana Gimenez ‘debateu’ o assunto no seu Superpop. O bom jornalismo determinaria um aprofundamento da questão, o que não houve. Os jornais ficaram na superfície, no sensacionalismo, no ato debilóide desse bispo. Mas quem escreveria que o aborto e a punição do bispo é parte da doutrina católica?

De fato, a doutrina católica é isso. Mas os jornalistas omitem para evitar que a religião seja vista como é, ou seja, de caráter medieval. De fato, considerem-se os posicionamentos históricos da Igreja: é contra o aborto, é homofóbica e machista; impõe o celibato aos padres por razões econômicas; transforma o que seria educação em catequese.

A questão do ensino religioso é das mais sérias no Brasil, mas a nossa mídia faz de conta que não existe. Primeiro, há o fato das escolas católicas serem as mais ricas do país. Segundo, o ensino religioso em escolas públicas ou particulares não é ensino, é catequese. Ao invés dos alunos receberem informações e refletirem sobre as religiões em geral, sobre a transcendência, recebem uma lavagem cerebral para acreditar nos santos e santidades católicos. E não apenas isso: considerando que toda religião supõe uma moral, uma doutrina, as crianças estão recebendo dos padres e freiras e seus devotos uma doutrina católica medieval com o que irão construir os seus valores de vida.

Sempre ao lado do poder

O ensino religioso nas escolas é uma das aberrações da educação hoje no Brasil. Mas que jornal, rádio ou TV enfrentaria o poder da Igreja? A escola é um espaço de educação, mas está sendo usada (eu disse usada) pela Igreja para faturar (são caras) e para criar fiéis, devotos dos seus santos, sob a complacência dos pais e, claro, da imprensa. Fazer catequese não é função da escola, é da igreja. É preciso separar as coisas.

Por este acordo, a Igreja Católica continua dona dos seus bens, mas permite ao Estado que invista recursos na sua manutenção, uma vez que se tornaram ‘patrimônio cultural’ do Brasil. Reconheçamos, de boba a Igreja não tem nada. Se alguém olhar a história desses patrimônios verificará que todos eles foram construídos com recursos da população ou do Poder Público (doações dos ricos, sangue dos pobres, terras e bens do Estado) – se sempre foi assim, não espanta que a Igreja queira continuar com o Estado bancando a manutenção dos seus templos.

O patrimônio da Igreja ao longo da história. Esta pauta a imprensa não vai pegar. Seria interessante, do ponto de vista jornalístico, levantar a quantidade de templos, casas, mansões, terras que a Igreja tem e, principalmente, como eles foram obtidos. As muitas igrejas e terrenos de Salvador, Ouro Preto, Olinda… Na capital ou no interior é assim: é comum a paróquia ser dona de bairros inteiros. Mas, atenção, isso não é coisa do passado. Ter privilégios é da modernidade católica. Se alguém olhar o mapa de Brasília, vai constatar que uma catedral católica inaugura a Esplanada dos Ministérios. Ao lado começa o Setor de embaixadas. E qual a primeira embaixada? A do Vaticano, claro. Ao lado tem a sede da CNBB e a casa do bispo. Por quê? Ora, porque sempre a catedral e a casa do bispo estão junto ao lado do poder. O Norte e o Sul da Avenida W3 começam com patrimônios católicos, com igrejas e escolas – são os únicos templos religiosos na avenida. Do mesmo modo, o Norte e Sul da Avenida L2 também começam com terrenos católicos.

Garantia dos privilégios

O acordo não fala em comunicação. Por razões estratégicas, a Igreja Católica atua na moita quando se trata do tema. Discretamente, ela formou uma das maiores redes de rádio e TV do país, competindo com as grandes emissoras comerciais. A Igreja Católica é dona de emissoras de rádio e TV, comerciais, educativas e até comunitárias. Bem, a lei proíbe as religiões de serem proprietárias de rádios comunitárias. Mas, sempre se dá um jeito quando se trata do poder. A igreja tem mais de 200 concessões de rádios comunitárias. É ilegal, imoral, indecente, mas…

A ambição da Igreja Católica não parece ter limites. Não bastasse possuir tantos veículos de comunicação, ela ainda ocupa espaços públicos. Todos os domingos, a TV Nacional e a Rádio Nacional em Brasília transmitem, ao vivo, a santa missa. O fato foi denunciado ao Conselho da TV Brasil, mas a resposta não chegou.

Historicamente, o Estado brasileiro não tem adotado a laicidade. Existem acordos políticos da Igreja com os governos que se sucedem, pela direita ou pela esquerda, para garantir seus privilégios. Serve aos seus propósitos. Mas boa parte da imprensa aceita isso.

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Jornalista, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias, mestrando em comunicação pela UnB