Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Síndrome da geografia preguiçosa

Se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz uma viagem de ida e volta a Nova York (EUA), a imprensa anuncia ‘O presidente viaja até NY’ ou então ‘O presidente viaja até os EUA’; dificilmente alguém seria tão impreciso a ponto de dizer ‘O presidente viaja até a América do Norte’.

Curiosamente, porém, se o presidente faz uma viagem de ida e volta a Luanda, a capital de Angola, a imprensa diz ‘O presidente viaja até a África’. Nesse caso, diferentemente do anterior, dificilmente alguém seria tão preciso a ponto de anunciar ‘O presidente viaja até Luanda’ ou mesmo ‘O presidente viaja até Angola’.

Ocorre a mesma coisa no plano interno. Se o presidente faz uma viagem até João Pessoa, a imprensa ‘aqui de baixo’ diz ‘O presidente viaja até o Nordeste’. Dificilmente alguém anuncia ‘O presidente viaja até João Pessoa’ ou mesmo ‘O presidente viaja até a Paraíba’. O mesmo ocorre com outras capitais do Norte e Nordeste. Se o presidente vai até Rio Branco, por exemplo, a imprensa anuncia ‘O presidente viaja até a Amazônia’; ninguém diz ‘O presidente viaja até Rio Branco’ ou mesmo ‘O presidente viaja até o Acre’.

Esses casos servem para ilustrar o que pode ser chamado de ‘síndrome da geografia preguiçosa’, um viés ideológico que é cotidianamente reproduzido pela imprensa, tanto a brasileira como a de outros países. Em linhas gerais, essa síndrome parece estar associada ao seguinte problema: quanto mais pobre (em termos econômicos) ou fraco (em termos políticos) for um país (ou região), mais os seus limites geográficos precisam ser ampliados para que nós, consumidores de notícias, possamos detectar o referido país (ou região) no painel de nosso (preguiçoso) radar mental.

Acidente com avião da FAB

No plano interno, especificamente, nenhuma outra região parece sofrer mais do que a região Norte com os erros e mal-entendidos que alimentam a síndrome da geografia preguiçosa entre nós. Para começo de conversa, repórteres e editores costumam cometer gafes grosseiras quando se referem à região, dando a entender que não sabem sequer do que estão falando.

Para muitos jornalistas, termos como ‘Norte’, ‘região Norte’, ‘floresta amazônica’, ‘Amazonas’ e ‘Amazônia’ são simplesmente sinônimos. Não é de estranhar, portanto, que boa parte das matérias publicadas sobre a região Norte, notadamente em meios de comunicação do Sul e Sudeste, reproduza erros e mal-entendidos grosseiros com tanta freqüência.

No que segue, cito algumas manchetes que exemplificam bem a síndrome da geografia preguiçosa. Todas elas se referem ao acidente aéreo que ocorreu dias atrás no sudoeste do estado do Amazonas e foram encontradas ontem (30/10), em meio às manchetes de dois sítios jornalísticos que costumo visitar, a saber:

Manchetes encontradas no sítio da Folha de S.Paulo (grifos meus):

** ‘Índios encontram avião da FAB na floresta amazônica; 9 sobrevivem’ (ver aqui)

Manchete duplamente imprecisa. Entre as alternativas possíveis que a tornariam melhor, cabe citar: (a) ‘Índios Matis encontram avião da FAB; 9 sobrevivem’, (b) ‘Matis encontram avião da FAB no AM; 9 sobrevivem’, ou então (c) ‘Matis encontram avião da FAB no sudoeste do AM; 9 sobrevivem’. Cabem aqui dois esclarecimentos: primeiro, de acordo com a própria matéria, os índios em questão são Matis; e segundo, o avião da FAB (Força Aérea Brasileira) caiu depois de sair da cidade de Cruzeiro do Sul (AC), durante um vôo que tinha como destino a cidade de Tabatinga (AM), no sudoeste do estado do Amazonas.

Manchete duplamente imprecisa

** ‘Funasa divulga nomes de passageiros de avião que sumiu na Amazônia‘ (ver aqui)

Manchete muito imprecisa. Melhor seria usar (a) ‘Funasa divulga nomes de passageiros de avião que sumiu no AM’, ou, melhor ainda, (b) ‘Funasa divulga nomes de passageiros de avião que sumiu no sudoeste do AM’.

Manchetes encontradas no sítio de O Globo (grifos meus):

** ‘Avião da FAB que estava desaparecido é encontrado na Amazônia‘ (ver aqui)

Manchete que também peca pelo alto grau de imprecisão. Melhor seria dizer (a) ‘Avião da FAB que estava desaparecido é encontrado no AM’, ou (b) ‘Avião da FAB que estava desaparecido é encontrado no sudoeste do AM’.

** ‘Índios encontram na floresta avião da FAB desaparecido’ (ver aqui)

Manchete duplamente imprecisa. Entre as alternativas possíveis, melhor seria dizer: (a) ‘Índios Matis encontram avião da FAB desaparecido’, ou (b) ‘Matis encontram no sudoeste do AM avião da FAB desaparecido’.

Chamada patética

Como se vê, não é preciso muito esforço para melhorar manchetes contaminadas pela síndrome da geografia preguiçosa, de modo a torná-las menos grosseiras e imprecisas.

Antes de finalizar, cabe ressaltar que o problema também ocorre em outros meios de comunicação, às vezes até de modo ainda mais veemente. Nas chamadas de abertura da edição de hoje (31/10) do Jornal Hoje, da Rede Globo, por exemplo, foi possível ouvir algo do tipo ‘avião que caiu na Amazônia’. (No sítio eletrônico desse telejornal, encontrei a seguinte manchete:

** ‘Sobreviventes da queda de um avião na Amazônia recebem alta do hospital’ (ver aqui)

Agora à noite, entre as chamadas de abertura do Jornal Nacional, também da Rede Globo, foi igualmente possível ouvir os apresentadores falando em ‘avião que caiu na Amazônia’. Ouvir uma coisa dessas na abertura daquele que talvez seja o telejornal de maior audiência no país é simplesmente patética. Das duas, uma: ou esse avião da FAB era gigantesco, ou a Amazônia é um quintal com apenas alguns metros quadrados de área…

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Biólogo e escritor