‘O que há em um nome?’, já perguntava Shakespeare. No Brasil de março de 2004, como na tragédia de Romeu e Julieta, há morte e destruição. Foi absolutamente chocante, para dizer o menos, o comportamento irresponsável da mídia com relação ao fenômeno sem precedentes que atingiu Santa Catarina no dia 28 de março.
O inconsciente coletivo do brasileiro médio está marcado a fogo com a noção de que nosso país é de alguma forma abençoado, ‘um país sem vulcões, furacões ou terremotos’. Canções populares exaltam essas qualidades e vivemos nos gabando da placidez de nossa natureza. Mas, pela primeira vez esse comportamento psicossocial nos colocou em perigo. No momento em que escrevo, três pessoas estão mortas e 12, desaparecidas, provavelmente mortas. Quinze patrícios vítimas de uma conjunção de otimismo inconseqüente por parte de meteorologistas despreparados, uma mídia alienada e um governo incompetente. Foi a nossa tempestade perfeita.
Às sete horas da manhã de sábado, 27 de março, em minha insignificante posição de astrônomo e meteorologista amador, utilizando os recursos que os americanos generosamente disponibilizam para a população mundial, eu previ com exatidão o local do landfall do furacão. Fiquei alarmado, pois tenho parentes em Florianópolis. Onde diabos estavam as agências federais nos alertando para um perigo iminente? Porque o Inpe não se manifestava de um modo mais enfático? Uma busca frenética na internet em português produzia resultados compatíveis com um modorrento sábado de início de outono, mas nenhum perigo à vista.
Enquanto isso, em inglês, a internet fervilhava de gente discutindo o fenômeno, com base nos relatórios do eficaz e experiente National Hurricane Center, dos Estados Unidos, que lançava boletins desesperadores. Percebi que algo estava terrivelmente errado.
Torre de marfim
Enquanto isso, a Globo e outras emissoras abertas exibiam desenhos animados e os programas insossos típicos do horário. Neste momento, os pescadores de Santa Catarina saíam para sua última jornada. Ainda à tarde, no sábado, as pessoas com quem eu falava riam quando eu mencionava o problema. A mídia continuava ausente.
Apenas por volta das 19h de sábado, no primeiro jornal noturno das redes abertas, o fenômeno foi apresentado aos brasileiros, mesmo assim em cores esmaecidas e imerso numa ridícula querela sobre como classificar o fenômeno. Os americanos insistiam em que era um verdadeiro furacão, e os cândidos meteorologistas brasileiros afirmavam que era ‘apenas’ um ciclone. Esqueciam que ventos de 120 km por hora ignoram a maneira com que são chamados e teimam em causar destruição. A idéia subjacente é que, se não era um furacão, então não havia necessidade de alarme. Por que alarmar nossos idílicos cidadãos com a notícia inconveniente de problemas no paraíso? Afinal, as ‘autoridades’ do Inpe haviam garantido que os ventos não seriam de 120 km/h, mas de ‘apenas’ 105, como condiz a um bom e genuíno ciclone. Os pescadores de Santa Catarina, nessa hora, já lutavam com ventos de 150 km, ao largo da costa. Apenas um ciclone.
O povo foi definitivamente apresentado ao Catarina (sim, ele tinha um nome de batismo!) apenas no domingo à noite, pelas faces compungidas dos apresentadores do Fantástico, quando o fenômeno já perdia força junto aos contrafortes dos Aparados da Serra. As cenas de destruição mostravam um dejá-vu, com imagens idênticas àquelas que vemos todos os anos na Flórida.
Ficamos sabendo que nossos incautos e desassistidos navegantes estavam desaparecidos, em função do (ainda) ‘ciclone’. A bela afrodescendente que apresenta a dita atração televisiva informava que nossos ‘especialistas’ discordavam dos americanos e que o fenômeno era, sim, um ciclone, e que estudos adicionais seriam empreendidos para fechar a questão.
Nossos comerciais, por favor.
A que devemos essa cadeia incrível de irresponsabilidade que envolveu toda uma nação? Será que a compulsão de negar o desastre iminente foi tão forte a ponto de causar a morte de tantas pessoas? A quem devemos responsabilizar pelo elevado numero de mortes num evento que poderia ser facilmente administrado, desde que a síndrome de Poliana não estivesse tão presente na mentalidade brasileira? Ou desde que houvesse maior interesse geral pelas questões científicas (das quais o brasileiro médio é tão distanciado), e ainda desde que nossos jornalistas, acomodados por anos de militância numa mídia cada vez menos crítica e viciada em press releases, tivessem se imbuído do verdadeiro espírito jornalístico e tivessem corrido para levantar fatos relevantes; desde que nossos ‘especialistas’, acostumados a fazer ciência de gabinete – mais preocupados com a titulação e o conforto de suas carreiras acadêmicas do que com pesquisa efetiva – tivessem descido de sua torre de marfim e ouvido seus experientes colegas americanos, que passaram 48 horas alertando e insistindo sobre a gravidade do problema.
Até o povo
Os EUA – como qualquer um pode verificar nos sites da comunidade científica americana – agora estão acusando o governo e os meteorologistas brasileiros de negligência (e incompetência), por não informar o povo, temendo arranhar a imagem de placidez do país e outros ícones do imaginário popular. Os americanos já falam em estender a zona de observação de furacões ao Hemisfério Sul. Eles fecharam questão no diagnóstico: não importa o que os meteorologistas brasileiros digam, foi um furacão, comme il faut. Um governo proverbialmente desastrado, inepto e alheio aos problemas do mundo real, foi na conversa de nossas ‘autoridades’ científicas e a coisa deu no que deu. Os pescadores que morreram foram imolados pelas nossas autoridades incompetentes. A União deve ser responsabilidade em toda a extensão da lei e acionada para a indenização das famílias. Fica registrado também mais um retumbante fracasso da ciência brasileira, tendo o Inpe novamente como protagonista.
Esse evento foi um golpe arrasador para nossa auto-imagem de privilegiados pela natureza, para nosso orgulho ambiental.
Como lição do episódio, é preciso que a mídia em geral faça uma autocrítica severa sobre seus métodos de obtenção de notícias. Determinar a responsabilidade das autoridades também será muito útil no estabelecimento de um nível de preparo maior, visando futuras ocorrências do gênero. A comunidade científica também precisa se reposicionar e começar a fazer pesquisa relevante, em sintonia com as necessidades reais do país (lembro que a parte mais significativa dos recursos para a pesquisa no Brasil é publica, sustentada por pessoas como os pescadores mortos de SC).
O povo também tem sua parcela de culpa. De agora em diante, as pessoas comuns terão que abandonar velhos mitos idílicos e entender que o planeta está sofrendo mudanças, e que eventos como esse certamente se repetirão. Por estes tempos, ninguém pode se considerar a salvo do péssimo humor da mãe Gaia, nem mesmo os habitantes do paradisíaco Brasil, que tem Deus entre seus cidadãos natos.
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Programador, músico e ambientalista, Bauru, SP