A imprensa deu tratamento de quasefait-divers às ocorrências dos dias 7 e 8 de outubro na linha férrea administrada pela empresa SuperVia, no Rio de Janeiro, quando multidões depredaram vagões de trem em regiões populosas como Nova Iguaçu, Nilópolis, Mesquita e Deodoro. Em outras palavras, o acontecimento foi descrito como uma anomalia (corroborada inclusive por algumas evidências de sabotagem) dentro da factualidade urbana.
O ingresso do termofait-divers na língua francesa data do final do século 19 e é devido tanto ao meio profissional quanto a grandes escritores, como Honoré de Balzac (1799-1850) e Stéphane Mallarmé (1842-1898). Este último chama de ‘grandesfaits divers‘ os textos que, a exemplo do escândalo do Canal do Panamá, entretêm o público leitor comfatos tão diversos como aqueles abrangidos pela semântica de ‘anomalias lógicas’ (do tipo ‘mulher saltou no abismo com medo de um rato’).
Mas a expressão também pode ser estendida a eventos que se conotam como meras singularidades, sem a devida inscrição no estatuto de fato social. Por isso, não raro, é usada para minimizar a importância de um acontecimento. Entretanto, quando se repassa a História do espaço urbano carioca, logo aparecem episódios semelhantes, capazes de poderem ser lidos como índices de um fenômeno social mais profundo, algo que pode mesmo constituir, por sua persistência histórica, um fato social relevante.
Reações violentas
Um episódio que ressalta na boa memória é a destruição do sistema deferry-boat entre o Rio e Niterói – as famigeradas ‘barcas da Cantareira – em meados do século passado. Mais precisamente, em maio de 1959, durante uma greve de marinheiros, os nervos dos passageiros, que viviam à flor da pele com a precariedade dos serviços, chegaram a seu limite de tensão, levando à depredação das barcas, da sede de Niterói e do próprio palacete em que vivia a família dos concessionários daquele meio de transporte. O acontecimento ficou famoso. E serviu como paradigma para um sem-número de outros semelhantes, registrados com os trens da Central do Brasil ao longo dos tempos.
Por trás de episódios dessa natureza se observa em geral o fenômeno da insatisfação generalizada dos usuários de um serviço essencial à movimentação da força de trabalho urbana que, sem dispor de uma representação corporativa, se expressa normalmente por meio de uma resistência difusa – na superfície, atos predatórios individuais dirigidos aos equipamentos públicos. Às vezes, entretanto, a insatisfação explode em fúria destrutiva por parte de multidões.
Ao observador atento ocorre a impressão de que a falha em um serviço consensualmente essencial é vivida como ruptura de um pacto implícito entre o poder de Estado e a massa trabalhadora. Trens, ônibus, barcas podem ser vistos como dispositivos estratégicos na gestão desse pacto. O ‘rebanho’ parece tolerar tudo – excesso de carga tributária, salários aviltantes, corrupção das altas esferas políticas, insegurança urbana – menos a paralisia técnica, ainda que ocasional, do direito de ir e vir. É um fenômeno molecular capaz de suscitar reações violentas no nível do conflito urbano continuado a que já se deu o nome de ‘guerra civil molecular’.
Exército de reserva
Paralisada no meio da rede de trilhos gerida pelo nome pomposo da SuperVia, a massa suburbana da megalópole simplesmente não suportou a falha técnica no sistema de trens e a inexplicada clausura (nessas horas, ninguém explica coisa alguma) dentro de vagões, agora sim, ‘super’lotados. É viável a hipótese de sabotagem (tijolos lançados contra o sistema elétrico), considerando-se alguns aspectos muito tensos da ‘guerra molecular’ entre prefeitura e setores irregulares do transporte urbano. Mas o ato deliberado, se houve, apenas aproveitou o nervo exposto de uma instabilidade.
Pode ser coincidência, mas o acontecimento dá-se em meio à euforia oficial com a escolha do Rio como sede das Olimpíadas em 2016; a Copa, como já se sabe, terá lugar em 2014. O discurso oficial tem andado repleto de supervias, supertrens e super-segurança pública. Na realidade cotidiana, convive-se com o avesso disso tudo.
Os jornais ainda fazem algum contraponto, mas seria preciso um jornalismo de qualidade (também o avesso do galopante jornalismo de abobrinhas relativas a televisão e celebridades) para aprofundar a crítica desse cotidiano estruturalmente violento. Um jornalismo empenhado em vender conhecimento do fato a seus leitores – e não vender seus leitores, como um mero exército consumidor de reserva, aos anunciantes.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro